Venho por meio desta debater mais um problema de gente privilegiada que pode se dar ao luxo de ser só levemente fodida em uma realidade de muito fodidos. Eu sei, eu sei, não é a coisa mais nobre a ficar remoendo na cabeça em tempos de fim de mundo. Penso nela do mesmo jeito, porém.
Ando com medo de escrever. Juro. Com medo do que vai sair. De não ser tão bom quanto eu preciso que seja.
2023 me trouxe a sorte, o privilégio e o resultado de muita ralação (vinda de mim e de outras pessoas) de ver minhas histórias chegando em mais gente, ganhando mais espaço, recebendo mais crédito. Sou muito feliz pelo modo com que os leitores receberam Mariposa Vermelha, por exemplo, um livro sobre uma mulher doida que se descobre ruim e seu demônio ruim que se descobre doido por ela. É uma história que recebe um carinho imenso, pelo qual sou muito grata. É um livro favoritado na lista de um bom número de pessoas. E escutei algumas vezes que é a melhor coisa que eu já escrevi. E que tem muita gente aguardando o próximo.
Fico lisonjeada. De coração, tipo mãe orgulhosa da cria.
Mas… e se eu já tiver atingido meu auge? E se eu nunca mais conseguir escrever algo que supere a obra anterior?
E nem estou falando de domínio da escrita em si, de prosa, de controle de cena. Isso eu acho mesmo que é um aperfeiçoamento contínuo — porém não linear — que vem com a prática. Estou falando daquele momento de eureca, do raio de inspiração divina para um personagem, um cenário, um enredo.
Besteira, podemos pensar, um escritor não para de publicar depois de uma obra-prima. Veja a Sarah J Maas, por exemplo, um dos maiores sucessos comerciais da romantasia: atingiu o pico no segundo livro de ACOTAR e nunca mais repetiu o feito, nem de perto, mas segue vendendo e movimentando uma legião de fãs mesmo, sei lá, quatro ou cinco livros depois (eu já perdi as contas). Eu amo um autor prolixo. Quero mirar ali no Stephen King (só que com mais romance), na Tessa Dare (só que com mais monstros).
Mas o problema, veja você, não é de natureza artística. É de cunho profissional.
Lá fora™, é possível segurar uma carreira já estabelecida apenas com uma produção constante de qualidade estável. Há dinheiro para marketing, há dinheiro para turnês, HÁ DINHEIRO. No Brasil, no mercado literário que temos atualmente, a boa vontade e o spam de atenção da audiência para a ficção fantástica dura o tempo de um livro. É tudo o que você tem. Pegar ou largar.
Nas aulas de literatura da escola, estudamos sobre as várias fases de determinados artistas. A fase deprimida, a fase tilelê, a fase em que pirou de vez e jogou tudo fora. Na literatura comercial de hoje, no Brasil, o autor só tem duas fases: sob o holofote e fora dele. E essa primeira fase, quando não alimentada constantemente, excessivamente, é efêmera.
As pessoas (e aqui não estou apontando o dedo para indivíduos específicos, mas falando de modo geral mesmo, eu inclusa) sempre esperam um livro melhor do que o anterior. Esperam ser surpreendidas. Esperam ver estourar, viralizar, surpreender, favoritar, consumir e fagocitar um livro atrás do outro. As editoras, com pouca margem de manobra, precisam acompanhar essas demandas e tentar economizar apostando em livros que possam se vender sozinhos. Tudo bem. Mas e se a sua qualidade começar a cair por um tempo, num movimento natural de altos e baixos que é intrínseco a toda produção artística?
A regra é clara. Só se pode dar ao luxo do auge quem já chegou em certo patamar que confira segurança para amortecer a queda. Segurança financeira, talvez, fazendo um bom pé de meia. Ou então segurança hierárquica, virando uma referência na área, alguém que não se pode simplesmente ignorar, ainda que resolva passar o resto da vida escrevendo listas de compras. Segurança profissional, talvez, quando sua obra já estourou tanto que você é uma aposta sempre segura, ou quando você já começou a trabalhar com roteiros e outros modos de contar histórias. Em certos casos, quando o autor já virou o produto de si mesmo, o que também é uma forma de trabalho, o ato da performance, de doar atenção e tempo para cultivar todas essas relações de afeto mesmo à distância, uma pulseirinha da amizade por vez.
Para quem não se enquadra nesses cenários, atingir o auge da escrita nem sempre significa sucesso, mas com certeza prenuncia o início da queda. Penso que, para o autor de ficção comercial, é melhor ir subindo aos poucos, numa linha constante, e chegar no auge lá pros oitenta anos (e aí não é possível que a gente não tenha inventado um jeito de se aposentar ou morrer tentando. Né? NÉ??).
Deus me livre escrever minha melhor coisa agora aos trinta e dois.
Antes disso, preciso chegar ao patamar de segurança acima mencionado, só que eu não sei onde ele fica nem como alcançá-lo. Na real, eu nem sei se ele existe.
Vou confessar uma coisa: tenho um sonho, quase uma fantasia, de reviver a icônica entrevista de Hilda Hist sobre seu livro pornográfico. Que mulher foda ostentando seu cigarrinho e dizendo “parece que a santa levantou a saia". Alguém ter a liberdade e a segurança de afirmar que fez um livro medíocre, mas que era o que queria fazer naquele dia mesmo. De rir na cara de quem espera essa perfeição, essa aura inalcançável da mulher artista, sempre acertando, sempre rendendo, sempre superando e estando acima de toda a merda, e não esqueça de sorrir. Poder fazer arte medíocre me parece um luxo, uma rebeldia. Inclusive, e acho que justamente por esse motivo, enquanto todos os meus projetos “sérios” andam estagnados pelo medo da queda, tenho me divertido escrevendo algo que eu só paro e penso “ninguém vai querer ler essa porra kkk”. E vai ver esse é o meu auge. Vai ver não. É, no mínimo, um bom exercício pra engolir o ego.
O negócio é que só quer abraçar o medíocre quem já atingiu a segurança do status. Se quero reviver o vídeo da Hilda Hist, quero primeiro ser a Hilda Hist, quero primeiro os vinte e tantos livros publicados e aclamados que é pra poder ouvir que escrevi uma merda e dar risada em vez de me esconder embaixo da mesa. Saber rir de si mesmo é um grande sinal de autoconfiança.
(Ainda vou usar esse mesmo vídeo para falar sobre como o gênero do romance é malvisto dentro da própria comunidade de ficção fantástica, mas aí fica pra outra newsletter.)
E assim, provando que escritores não têm um dia de paz — porque quando tá na merda tá sofrendo e quando não tá tem medo de voltar pra ela —, sigo orando por paciência (vinda de mim e dos outros) para a minha escrita.
Talvez, hoje, ela saia ruim. E não tem muita coisa que eu possa fazer, a não ser seguir tentando, a não ser continuar pondo no papel aquilo que dói, aquilo que amo, aquilo que chama. Aceitar fazer o papel da palhaça.
Já diria Lygia Fagundes Telles, para citar mais uma mulher foda:
A criação literária? O escritor pode ser louco, mas não enlouquece o leitor, ao contrário, pode até desviá-lo da loucura. O escritor pode ser corrompido, mas não corrompe. Pode ser solitário e triste e ainda assim vai alimentar o sonho daquele que está na solidão.
Deixo também dois textos e uma tirinha que me mexeram as minhocas da cabeça nos últimos dias. Este aqui do Cristhiano Aguiar sobre perder prêmios literários. Este aqui do Rodrigo van Kampen sobre monetização. E esta tirinha que talvez tenha me poupado alguns anos de terapia e me custado uma hora de choro.
Um beijo pra você que escutou tanta abobrinha até aqui. Que a gente atinja o auge, um dia, bem distante. E que saibamos ser medíocres. Amém.
Fer, lindas reflexões. A tirinha apertou meu coração também. Foi um momento de choque quando percebi que escrever não era mais um só um hobby nem podia ser. Não é ruim, como disse a tirinha, é só diferente. Depois vou te chamar pra conversar sobre isso. Mas você é uma autora incrível e se um dia publicar algo que não seja "o auge" isso não vai apagar as obras maravilhosas que já escreveu. A carreira é soma. Mas entendo o dilema de querer escrever certas coisas e se podar um pouco pelo modo como isso pode te impactar depois...
Gostei muito do texto! Essa, creio, seja uma pressão muito mais interna do que externa... apesar dos exemplos que você deu sobre a visão do outro sobre a produção literária de alguém.
O engraçado de escritores (pelo menos no meu caso) é como agem com relação ao que estão escrevendo: sempre empolgados com a obra sendo escrita e sem a mesma empolgação pela que deveria estar divulgando, porque ela já passou. Nós também temos essa vontade do próximo ser incrível. Quem sabe focar no que vem pela frente, e não no que passou, seja uma boa forma de tentar vislumbrar o auge no futuro, não no passado :)