Entrei nesse mundinho da comunidade literária em 2015, maravilhada com a possibilidade de criar um blog, lançar histórias no Wattpad, entrar em grupos de leitores de fantasia no Facebook. Parecia um inesperado universo de possibilidades, sobretudo para alguém muito caseira morando do outro lado do Brasil em relação ao polo “onde as coisas aconteciam”. Meu Deus, posso ir construindo uma audiência e uma comunidade, leitor a leitor! Só que, claro, era preciso entrar no jogo. Fiz parceria com editoras, postava fotos sempre que comprava livros novos, ia em eventos, dava palestras, escrevia resenhas com a avidez de um repórter fechando um novo furo jornalístico. Contava likes, fazia projeções de seguidores.
E, de fato, cá estou eu! Mudei de carreira, fui publicada em editoras, ganhei prêmios, fiz amigos! Um sonho virando realidade!
Não vou cuspir no prato: qualidade de textos à parte, eu nunca teria alcançado certas oportunidades sem a Fernanda de 2015 online o tempo inteiro. Porque, convenhamos, é preciso ser visto, é preciso ter onde exibir seu trabalho, é preciso saber a hora certa, quem abordar, como se portar. E essa é a parte da vida de escrita/freelancer editorial que não dá para fazer na quietude solitária do seu computador. Então, sim, jogar o jogo provavelmente funciona.
Mas puta merda, como o jogo tá difícil.
Se por um lado deve contar o fato de que não sou mais djóvem (e por isso com menos tempo, saúde e paciência sobrando para me dedicar ao “trabalho do meu trabalho”), por outro acho que essa tal de presença online virou um daqueles ouroboros dando um esculacho na própria cauda.
Não basta mais escrever — o alcance é melhor fazendo vídeo.
Mas vai fazer vídeo no Reels? Hoje o que tá bombando é o TikTok.
Mas assim de cara limpa? Sem edição? Tem que produzir seu cenário.
E vai postar desse jeito? Um vídeo por mês? O algoritmo te engole.
E a sua casa? E o seu processo de escrita? E a sua mesa? E o seu unboxing? E a sua caneca? E a sua estante? E o seu react? E a sua opinião? Meu Deus, a sua opinião.
A sensação que eu tenho (e que vejo em muitos colegas), é que agora o negócio é ter onipresença online. Quase um Everything Everywhere All at Once da vida real. E se você não dá conta de tudo isso, aí o jogo te engole e você precisa procurar outro caminho.
Mas, Fernanda, tanta gente faz um conteúdo orgânico bacana, nada forçado, super autoral e dá certo!
Verdade. Inclusive morro de inveja.
O problema real é quando isso vira a norma. Quando se espera que todo mundo siga essas regras e se adeque a essa dinâmica. Quando deixa de ser sobre o perfil de uma pessoa e se torna o esperado de qualquer artista. O que, imagino, afete todas as formas de expressão artística, mas que, no caso da literatura, ainda tem o agravante de demandar rapidez e frequência numa atividade fatalmente lenta e de produtos esparsos.
E se qualquer autor recomenda o tempo da contemplação, do olhar para dentro, do observar sem interferir a fim de maturar uma obra tal qual as estações do ano (tão lindinha aquela comparação com uma árvore sem folhas no inverno, mal sabe a árvore que vai morrer de fome porque uma estação é tempo demais para ficar sem postar nada), a rede exige o agora, o fast-food da arte. Criatividade sob demanda. Aperto um botão e o macaquinho dança.
Uma coisa que tenho comentado várias vezes com os amigos é essa sensação incômoda de que, mais do que consumir a arte, se deseja consumir o artista. Um movimento antropofágico mais alinhado ao sentido da palavra. Não é seu livro que vende nem é você que vende o livro. É você que se vende. E, como já dizia o velho manual de marketing, para gerar vendas, é preciso gerar demanda. É preciso se tornar um produto atraente.
Vasculho redes sociais e percebo que as pessoas estão sempre berrando, gritando, urrando, chorando, mortas com farofa. Os adjetivos são sempre incríveis, perfeitos, surreais. Tudo muito, tudo excesso. Tudo exposto. Tudo cuidadosamente capturado para a câmera.
Mas e se eu não quiser? E se eu quiser trabalhar de blusão furado e calcinha com fiapos de feno presos no cabelo oleoso? (Invejosos dirão que sou eu agora, mas foi só um exemplo hipotético, claro.) E se eu não for uma pessoa que sabe expressar emoções pra câmera?
E se eu não quiser sacrificar a privacidade dos mesmos processos que me levam a escrever boas histórias?
E se essa privacidade fizer parte da receita para que eu escreva uma boa história?
Engraçado que eu já vi esse ouroboros rodando antes. Engraçado que eu (assim como, provavelmente, você) já caí nele também. Lá por 2018, chegou com força uma onda que denominava as pessoas como fadas e cristais sensatos. Nunca passou frio, a pessoa está coberta de razão etc etc. E aí começamos a misturar pautas sérias e importantes com uma vigilância à base de denúncias que rendia ao algoz uma publicidade muito mais rentável do que o trabalho de formiguinha do dia a dia. E é claro que muita gente reviu comportamentos nocivos (às vezes até não intencionais) por causa de “toques” em redes sociais, mas acho que a gente viu mais o estabelecimento da reputação sensata na base da paulada mesmo.
E assim, depressa como o tempo do algoritmo, as discussões foram esvaziadas à profundidade de uma poça. Preto no branco, certo ou errado. E foi aí que deu merda.
Autores sendo “retirados do armário”, gatekeepers em cada esquina, o que você pode ou não pode em gêneros literários que historicamente abraçavam a contravenção. A demonização do simplesmente não saber opinar sobre um assunto que lhe compete e preferir ficar calado (Glória Pires se daria muito mal no Twitter). A higienização dos livros, a cobrança para que nossos gostos se adequem a uma perfeição inatingível. E tudo isso girando enquanto, ao fundo, por trás das cortinas, uma lógica mesquinha de divulgação escolhe quem é ou não é relevante.
Mas, voltando ao assunto, eu ando assustada com a quantidade de colegas cansados. Não aquele cansaço habitual de uma profissão concorrida de poucas oportunidades, que é um cansaço já esperado, mas cansados especificamente de redes sociais e presença online. De não ter o perfil, de não querer ser sua própria marca.
Também não estou aqui propondo soluções, tenho consciência de que o calo engloba muito mais coisas do que o mundinho literário. Talvez seja o próximo mal-estar social, sei lá. Sei que — hilário — tenho me sentido muito mais à vontade em newsletters, grupos pequenos no Telegram, textos sem nenhum link, sem nenhuma imagem, só eu aqui juntando palavrinhas e tomando seu tempo. Será que cola se eu lançar a opção da presença online tântrica?
Ou vai ver eu só tô ficando velha. Ou a galera mais jovem ainda não teve tendinite suficiente, vai saber.
Admiro muito os autores que conseguem ter uma presença relevante e saudável na rede, que sabem mensurar o que mostrar e o que não mostrar, que estão com uma cara legal quando abrem a câmera frontal do celular às onze da noite. Gente que sai e faz coisas, veja só, em vez de passar o dia em casa.
Faça o que você gosta, mostre a parte da sua vida que te empolga, seja autêntica! — eles dizem.
Mas e se eu não quiser?
Aí te fode, né, Fernanda.
Pois é.
* um beijo para Denys Schmitt e para os autores da Magh que contribuíram sem nem saber com a formação desse texto na minha cabeça e outro grande para Gabi Colicigno, agente que precisa lidar com esse bando de gente fechada na concha.
"Autores sendo “retirados do armário”, gatekeepers em cada esquina, o que você pode ou não pode em gêneros literários que historicamente abraçavam a contravenção. A demonização do simplesmente não saber opinar sobre um assunto que lhe compete e preferir ficar calado (Glória Pires se daria muito mal no Twitter). A higienização dos livros, a cobrança para que nossos gostos se adequem a uma perfeição inatingível. E tudo isso girando enquanto, ao fundo, por trás das cortinas, uma lógica mesquinha de divulgação escolhe quem é ou não é relevante."
esse é o mundo pós-apocalíptico das redes, e a gente tentando se virar no meio disso tudo. Obrigado pelo texto e por me ajudar a organizar tão bem esses sentimentos!
Eu comecei a brincar de escrita (não só de escrita, mas influencer num geral) e me deparei com esse cenário que você descreveu.
Tanto se alerta para os perigos de se virar um produto e nós abraçamos sem pestanejar esse novo molde de vida. Quase uma construção de arquétipos modernos em que se agarra para viver uma vida que não é sua, ou que você almeja (filosofei agora).
Sinceramente, não sei muito bem para o que escrevo. Desanima essa ideia de virar um produto. Me resta escrever porque eu gosto mesmo!
Muito bacana o seu texto! Muito sucesso nessa jornada :)