Escrevo essa newsletter da praia, mais especificamente de Muro Alto, meu lugar favorito no litoral de PE, bem ao lado do Porto de Suape.
Enquanto tomamos banho e enfiamos o pé na areia, vemos os cargueiros ao fundo chegando com os contêiners, as toneladas de aço nas tubulações da antiga refinaria, as chaminés de fogo interminável. A discussão dentro d'água gira em torno de como a praia está a um fio da destruição, bastaria um vazamento qualquer, um erro qualquer.
Meu sogro, engenheiro: “Nah, essas tubulações são relativamente novas. Até dar problema, ainda vão aí uns bons anos.”
Note que não é que “não vai dar problema”. É “até dar problema”.
Porque o brasileiro cresce e vive sempre à beira do desastre.
Dante Luiz publicou um artigo (em inglês) sobre como os tropos do horror do mercado anglófono muitas vezes não dialogam com o leitor brasileiro. São medos que não fazem sentido para quem convive com a morte todos os dias. Para além da relação que temos com os mortos, a gente normaliza o desastre porque existem outras prioridades a temer. A insegurança alimentar, a violência nas ruas, a violência dentro de casa. O Desastre, assim com D maiúsculo, aquele que faz tocar a música do Plantão da Globo, é apenas risco ocupacional.
E não é porque ele está longe. Não é porque é fora da realidade. Brumadinho. Mariana. As chuvas em Petrópolis. As chuvas em Recife.
Tem uma fábrica de jeans no Ceará que construiu uma espécie de açude/fosso para isolar a água poluente usada na lavagem do tecido. E todo mundo dos arredores sabe que, caso um dia aconteça uma chuva muito forte e esse fosso transborde, o rio das redondezas vai estar condenado. Aliás, “caso” não. Quando.
É tipo olhar para o corte do morro e ver, a cada ano, a cada inverno, a ribanceira comer mais um palmo em direção às casas. Um dia a lama leva. E um dia a gente chora. Mas pelo menos não é hoje.
Tive uma conversa sobre isso com as amigas recentemente. Todas crias dos anos 90 com pais trabalhando no setor privado, o Desastre sempre esteve presente.
Certa vez, meu pai me levou pra conhecer a empresa onde ele trabalhava. Eu amava os tanques de gás, as válvulas, os gráficos coloridos indicando o nível de periculosidade de cada parte do projeto. Lembro também de um grande pátio cimentado com quadradinhos plásticos pintados, cada um com um número e um nome completo. “Pra caso aconteça um vazamento e a gente precise evacuar o prédio", explicou meu pai. “Cada funcionário sobe num quadradinho e aí a gente sabe quem tá faltando, quem tem que ir procurar.” Um cemitério às avessas, talvez, onde a presença do corpo no túmulo é indicativa de vida.
Não lembro se cheguei a encontrar o quadrado do meu pai, mas lembro que a imagem me voltava à mente vez por outra, um misto de fascínio e normalidade. Mas nunca me passou pela cabeça racionalizar que meu pai trabalhava numa bomba em potencial.
Já outra amiga ficou sem dormir quando descobriu que todo o sul do RJ seria afetado caso houvesse um desastre nuclear em Angra.
Tenho parente que morreu em acidente de construção civil. Meu sogro tinha um amigo que morreu manipulando substâncias inflamáveis em chão de fábrica. Pisou meio errado, deixou cair o que não devia, morreu. Quando o Areia Branca — um edifício residencial aqui de Recife — desabou, eu estava sozinha em casa com a minha irmã e sentimos as janelas tremendo, um estrondo gigantesco como uma soma de uns dez trovões. A gente não fazia ideia do que tinha acontecido até ligar a televisão.
Aliás, na vida do brasileiro, (in)segurança no trabalho vira até piada da família.
O avô do meu marido não tinha dois dedos e meio porque era marceneiro, às vezes bebia além da conta, ia trabalhar e acabava serrando mais do que a madeira. Uma história contada em tom bem-humorado à mesa, porque não é possível kkk o seu avô kkkk cortou kkkk outro dedo kkk sim, de novo.
Uma vez fui visitar a parentada no RJ e minha avó me mostrou toda orgulhosa o vidrinho com as quatro balas perdidas que já tinham caído no quintal da casa. Era uma coleção. A família toda de lá tem causos vividos em primeira pessoa envolvendo tiroteio, arrastão e assalto. Sempre com aquela risadagem depois do susto, aquele humor de quem, na hora, “não passava nem wi-fi”.
A gente faz gambiarra e sabe que pode tomar choque a qualquer momento. Que a laje pode desabar de tanto peso. Que o galho podre pode cair no telhado. Mas a gente aposta, a gente leva nos dados, na fé e no cuspe, no humor despreocupado de quem já experimenta perrengue demais todo santo dia. Tenho por teoria que, se fôssemos enterrar um suposto brasileiro médio, em seu epitáfio deveria constar:
“Ô motorista, pode correr, o brasileiro não tem medo de morrer.”
Se todo dia a usina explode, o porto vaza, a barreira desliza, a polícia mata, o chupa-cabra come, o corpo cai e a alma encarna, não há cidadão que comporte tanto medo. Se você for ter medo de tudo, você não vive, aconselhava meu pai, um cara que agora aos sessenta e tantos assume ter medo de muita coisa. Então o que nos resta senão fazer da morte a sombra esperada de cada dia? É um superpoder que eu admiro. Que me dá aquele calor de ser brasileira apesar de tudo, apesar de todos. Só que de um jeito mórbido.
Como diz Chico Buarque:
Muita mutreta pra levar a situação
Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça
Que a gente vai tomando e também sem a cachaça
Ninguém segura esse rojão
Mano, que texto.
Eu tô nesse momento passando um fim de semana na casa de um amigo brasileiro, em Londres. Ele trabalha na BBC, videojornalista, e eu moro em Munique. Estávamos conversando exatamente sobre a diferença do brasileiro quando se depara com um problema: "matamos no peito, manda que a gente resolve", versus o "impossible" (e "unmöglich") dos europeus. Todo novo problema — crítico, grave, impossível — pra gente vira um "problema??? Vocês nunca viram um problema de verdade".
Nossa, você tem um jeito com as palavras! Que texto bonito.