Tomando como base o mundo do romance romântico, existem duas abordagens para produzir histórias. Você pode enxergar a literatura como uma força moralizante, no sentido de que ela deve educar ou ao menos representar para o leitor aquilo que seria mais saudável de buscar na própria vida, e você pode enxergar a literatura como uma força extrapoladora da realidade, no sentido de que ela está ali para servir como catarse a coisas que não necessariamente obedecem parâmetros desejados para o mundo real.
Tendo a achar que as duas abordagens são interessantes (sobretudo para audiências mais jovens) e que podem coexistir. Também acho que cada autor terá um alinhamento pessoal sobre o tipo de história que pretende contar. Você pode inclusive achar um mundo de narrativas que misturam as duas coisas em vários graus, milhares e milhares de nuances em uma fórmula que vai justamente caracterizar a produção de um artista e atrair para si o público que mais se alinha àquele estilo (que coisa bonita é a arte, né? Quem diria).
De minha parte, sou do time que tende mais para a catarse.
Dito isso, ando vendo tantas críticas aos tropos mais famosos dos mocinhos de romantasia que me vi envolvida refletindo sobre o tema. Longe de mim dizer que o gênero (ainda dominado comercialmente por uma ótica de determinado recorte social) esteja acima de qualquer crítica, muito pelo contrário. É só que, para ser honesta, chega uma idade em que a gente para de querer ter razão, de tomar partido e de defender famoso e passa a só querer conversar mesmo. Então, dado que os mocinhos de romantasia andam apanhando tanto, vou me oferecer como advogada do diabo aqui.
(Antes de começar, é importante estabelecer que tudo que eu falar será relacionado às romantasias escritas por mulheres e que alcançam sobretudo as mulheres hétero, está bem?)
Bom, vamos lá, olhe só para eles. Os morenos sarcásticos de passado triste. Os vilões de ombros largos e barriga de tanquinho prometendo o mundo a seus pés. Os inteligentes, os bem-dotados, os super sensíveis e que sempre acertam o presente de Natal perfeito, os que amam conversas profundas e protegem sua amada acima de qualquer custo. Você conhece muitos homens assim na vida real? Pode parecer, à primeira vista, que personagens tão claramente irreais demonstrem uma falta de habilidade na escrita. Ora, olhe só para esse homem que não parece nadinha com um de verdade, essa mulher com certeza é uma escritora iniciante. Como pode ter tanto público?
Ora, é que a arte não é vida real. E, quando a função dela é ser extrapoladora, o modelo idealizado pode virar uma ferramenta.
Os mocinhos da romantasia estão ali como a personificação de um desejo, de um fetiche, estão ali para prover um contato entre leitora e suas fantasias mais profundas, coisas que na vida real ou não costumam existir ou são reprimidas por nós mesmas em prol da civilidade ou de um entendimento sobre a origem daquela fantasia. Independente da habilidade de escrita de determinada autora, eu lhe garanto que ela SABE que está criando um personagem mais como propósito do que como indivíduo. O que vai variar é apenas a gradação desse mocinho idealizado, para mais ou para menos.
E notou que usei a palavra leitora lá em cima? É porque, apesar de quererem e merecerem ser lidas por todo mundo, a maioria das autoras de romantasia escreve pensando em mulheres, porque é a experiência que nos cabe, a fantasia que entendemos e que queremos prover. O livro é destinado a todos, mas é direcionado a uma persona que, muitas vezes, perpassa a autora (afinal, estamos contando uma história que gostaríamos de ler). O que não significa que alguém de fora desse grupo não possa ter uma ótima experiência. Deus sabe que amo muita coisa que não foi feita pensando em mim. Velozes e Furiosos com certeza não foi feito pensando em mim (e, se você quiser falar sobre homens irreais, sugiro começar por aqui). O jogo Diablo com certeza não foi feito pensando em mim. Nem Our Flag Means Death. Nem os Power Rangers. Amo todos mesmo assim.
(Apenas A Múmia foi feito pensando em todos, amém.)
Sigamos.
Carol Chiovatto comentou em um vídeo recente sobre como não curte mocinhos que se oferecem para destruir tudo pela mocinha, pois acredita que a destruição é algo mais fácil do que a construção. Se você leva anos para construir uma cidade, uma bomba pode destruí-la em poucos segundos. Para ela, é mais tocante que o mocinho construa coisas em nome do amor. E tudo bem, faz sentido, essa é uma preferência pessoal com uma explicação bastante lógica. É possível encontrar bons livros de romance que vão se alinhar a essa expectativa. A própria Carol explora outras dinâmicas interessantes.
Mas vou usar esse exemplo (desculpa, Carol, vou te pegar pra Cristo!) para falar de algo que me incomoda e que vi bastante nos últimos dias devido à chegada de obras famosonas no mercado BR. Me pega um pouco testemunhar tanta gente, incluindo leitoras do gênero, encarando a questão como um fator não de preferência ou vertente, como posto pela Carol, mas de moralidade ou evolução: As mulheres que sentem tesão pelo tropo X ainda estão presas a uma mentalidade machista. Elas precisam ser salvas.
Olhando em retrospecto, acho que é o mesmo desvio que cometemos uns anos atrás, quando a norma da protagonista empoderada era ser diferente das outras. Nossas garotas deviam se espelhar em mulheres que soubessem lutar, que não ligassem para maquiagem, que desprezassem com um revirar de olhos qualquer lição de costura ou culinária.
E, é claro, entendemos a importância de negar os papéis restritivos impostos pela sociedade para as mulheres. Não precisamos ser só isso.
Mas a gente pode, se quiser. Com o tropo do “ela não é como as outras", ignoramos séculos de sororidade, de mulheres conversando na cozinha, de aprendizado, de uma arte pouco valorizada e pouco documentada, passada entre as gerações. Ignoramos o fazer doméstico como também um espaço seguro para troca de conselhos e confissões.
Foram estes mesmos “romances de banca", tão achincalhados e desprezados, tão “de segunda classe” e “mal escritos”, que ajudaram tantas e tantas mulheres, mesmo casadas, a despertar para uma vida sexual prazerosa, para explorar o próprio erotismo.
É também sintomático que, muitas vezes, a romantasia seja automaticamente associada ao young adult. É um problema de marketing, talvez, mas com certeza é também um problema de conceito. Como se esse tipo de história só pudesse ser consumido por mulheres em formação. Vai passar. Você vai evoluir. Chega a ser engraçado, né, a romantasia para jovenzinhas, o romance de banca para as vovós vítimas do patriarcado. Nunca mulheres adultas. Nunca mulheres feitas capazes de decidir por si mesmas.
Quando negamos a promessa da destruição como algo ruim para além do gosto pessoal, estamos também negando uma fantasia de muitas mulheres como algo ruim. Algo inválido.
É importante notar que os tropos da romantasia não são reproduções inconscientes de conceitos criados por autores homens. Os tropos da romantasia não foram escritos para o consumo de homens. Você não vai achar isso fora do gênero. Eles saíram de mulheres, para mulheres, pensando em mulheres. Esses mocinhos são idolatrados. Os livros são lidos e relidos, emprestados, comentados com as amigas. E são ridicularizados e menosprezados pela mesma legião de leitores incapazes de compreender a magnitude do romance romântico enquanto gênero.
Acho que há algo aí digno de nota, não?
Penso que destruir é mais fácil que construir quando se é homem (branco, cis, hétero… vocês me entenderam). Mulheres nunca tiveram a prerrogativa da destruição. Elas cuidam, nutrem, educam, maternam, agregam, acolhem, perdoam. Victor Hugo dizia que Deus fez para o homem um trono, e, para a mulher, um altar.
A mulher que destrói é pária mesmo entre as suas, pois agiu como homem. É pária até para si mesma, pois foi ensinada a sentir uma culpa tremenda por qualquer vestígio de egoísmo. Quantos pais abandonam seus filhos após um divórcio? Quantas mulheres ficam em um casamento ruim por causa dos filhos? A mulher segura as pontas que é para justamente não destruir nada. Lembra do tema da redação do Enem?
Se engana quem pensa que a romantasia está aí só para preencher fantasias sexuais. As coisas são muito mais interdependentes. A promessa de destruição é uma fantasia de poder.
Inserido no mocinho, o potencial destrutivo a isenta de culpa. Ela não é a agente causadora da destruição, mas o poder é dela. Está por um fio. Está por sua decisão. Está ao alcance.
Por dentro, no âmago, todas as mulheres que conheço sentem em alguma medida um desejo mórbido de jogar tudo para o alto. De sumir, de deixar o circo pegar fogo, de dizer não. A liberdade de ser ruim, de se colocar primeiro, de ser maluca, de ser selvagem. E de não sentir culpa.
Um mocinho que se oferece para colocar o mundo de joelhos por ela oferece um sonho em bandeja de prata. Não significa que essas mulheres queiram a violência, ou que o façam na vida real (gosto de acreditar que as leitoras são bem grandinhas e não devem ser subestimadas), mas elas querem a possibilidade. Querem estar intocadas, protegidas, donas do poder. Até porque, esse mundo fictício que está sob ameaça de destruição costuma ser uma grande metáfora para tudo que a oprime dentro da história.
E é aí que os fetiches começam a se misturar. Penso de verdade que a construção de um bom mocinho passa longe de ser uma questão apenas de escrever boas cenas de sexo. Há mais mistérios entre o céu e o clitóris do que sonha tua vã filosofia.
(Um detalhe engraçado para ilustrar meu argumento é notar como o Henry Cavill conquistou um espaço muito precioso para o mercado, que é satisfazer tanto fantasias de poder femininas quanto masculinas. É por isso que você não vê muitos caras reclamando dele, por mais irreal que ele seja — porque ele é. Eu só aceito a existência desse homem se eu encontrar o dito cujo na rua. Pense como seria caso ele protagonizasse apenas filmes voltados para o público feminino…)
De fato, o gênero tem ganhado contornos interessantes onde a mocinha acaba por abraçar a própria monstruosidade e se torna a promessa de destruição em si mesma ao final do livro (não, isso não é uma propaganda de Mariposa Vermelha, mas poderia ser). Vejo acontecendo muito no monster romance e nos livros de ficção fantástica de autoras latinoamericanas. A autora Carol Façanha chegou inclusive a defender uma tese de doutorado incrível sobre “Da Vítima ao Monstro", uma estrutura narrativa tal qual A Jornada do Herói ou da Heroína, mas apresentando os passos para essa transição entre mocinha e vilã, com todas as contradições e problemas no processo.
Claro, é possível argumentar que ter tantas mulheres com esse fetiche é um sintoma da realidade em que vivemos. Concordo. Com certeza sociedades diferentes produziriam fantasias diferentes e menos universais. Mas a melhor maneira de combater isso é negar às mulheres explorar os próprios desejos? Tal qual a mãe que repreende a filha pequena ao tocar os genitais, curiosa em entender aquele pedaço de si mesma, não estaríamos impedindo que as mulheres conheçam e explorem também os pedaços feios de si sob a alcunha do feminismo?
Em seu manifesto, Emily Lubanko, autore do meu baralho de tarô favorito, diz uma coisa que guardei muito comigo. Cito aqui em tradução livre, e nem acho que elu esteja falando sobre a mesma coisa que trato neste texto:
“Historicamente, estou acostumade a ver pessoas com o pé atrás. Fui designade como mulher ao nascer, sou queer e não faço arte que seja natureza morta de flores ou barquinhos flutuando serenos na água ao pôr do sol ou o que quer que seja. Amamos quem você é, de verdade, mas, por favor, remova 80% do que faz de você, você. Remova o que te salvou, remova o que é honesto tem sido uma opinião comum sobre o meu trabalho. Há muito tempo que venho fazendo o que faço e divulgando. Sempre encontro meu público, e eles me encontram.
Este baralho é, acima de tudo, uma obra de arte plena. É uma obra de arte que prioriza acima de tudo a honestidade sobre o mundo, sua dor e sua confusão. Fui salve pela arte que falava francamente sobre tristeza e bagunça, e não vou cuspir na cara do meu eu mais jovem.
[…]
O medo que faz esconder a tristeza tem um efeito alienante: ao esconder a verdade da luta, mantemos separados aqueles que estão lutando, em vez de permitir que todos deem as mãos.
Há uma onda de censura que varre este país e que artistas como eu — pessoas queer, pessoas que criam trabalhos sobre qualquer coisa que não seja felicidade simples, castrada e pintada de branco — estão sentindo bastante.”
A onda de puritanismo na arte que Lubanko menciona é algo que me assusta, principalmente porque gosta de alvejar tudo que é feito para desafiar, para gozar, para se descobrir. As cenas de sexo são consideradas supérfluas e de pouca adição à narrativa. Estranhamente, as cenas de violência, não.
Ter a liberdade de explorar as partes contraditórias de si mesma no espaço seguro da ficção é um jeito não só de se conhecer, mas de se compreender. De lidar melhor com tudo que nos forma. Entender o que nos influencia, de onde veio, por que tal coisa é assim. Antes de afastar as mulheres umas das outras, é um convite (muito prazeroso) para que possamos conversar de forma aberta sobre tudo isso. O diabo mora no desconhecido.
Sempre serei a favor de deixar o leitor explorar as próprias nuances. Já sobre a qualidade dos livros que abordam temas mais sensíveis ou polêmicos, acredito em falta de bom senso e em falta de caráter, mas não na falta de liberdade para fazê-lo. Romantasia, para mim, é pura catarse.
Posso estar errada, mas sei o que me faz encolher os dedos dos pés. O que me acelera a respiração. Nem sempre é bonito. Mas não vou me desculpar. E acho uma pena que tantos queiram extirpar isso da arte. Ainda mais quando ela é feita assim, de nós para nós.
Escrevam mais romantasias. Para si, para outros grupos, para todos. A fim de abrir mais espaço, não é necessário que ninguém deixe de gostar do que gosta. Legalizem gostar, legalizem entender, porque odiar já tem muito.
Muito bom, Fer, estou feliz que você escreveu esse texto! Adoro esses debates sobre representação l. A significação é uma construção coletiva, mas, ao mesmo tempo, tem seus aspectos individuais. Eu adorei a parte sobre mulher e desejo de destruição x culpa, isso é real demais
a arte existe porque a realidade não dá conta... quem quer ler um romance onde a protagonista namora um feio sem graça? kkk isso ja e a realidade de muitas... enfim gostei da reflexão