Quando vou dormir, gosto de deitar no peito do meu marido para pegar no sono. Há uma espécie de conforto na familiaridade que me ajuda a adormecer em questão de minutos (depois cada um vira pro lado e dorme feito pedra, mas não vamos tirar a poesia do parágrafo). A temperatura, o cheiro, o coração batendo. Uma sensação de corretude e encaixe que não necessariamente tem a ver com um suposto encontro entre almas gêmeas (mas não vamos tirar a poesia do parágrafo).
O negócio é que a gente costuma associar lembranças apenas ao cérebro, esquecendo que memória é também pele, ossos, músculos e sentidos. Após doze anos juntos, meu organismo inteiro reconhece a pessoa que dorme ao meu lado.
Quando criança, sempre gostei de observar minha mãe cozinhando. Em específico, o momento em que ela descascava/picava os ingredientes. Nada chique, nada daqueles cortes precisos de chef em uma tábua, com os dedos para dentro. Ela picava tudo segurando na mão mesmo, puxando a faca para si até a lâmina encostar no dedo oposto. E fazia tudo isso sem olhar, numa velocidade impressionante, conversando. Ou ainda mais rápido, quando estava nervosa ou chateada e descontava tudo nas cebolas.
Me encantava que ela nunca se cortasse. Mais velha, tentei imitar seus gestos, que eu já conhecia perfeitamente devido aos anos de observação. Um desastre. Porque não basta a memória do olho, do assistir. É preciso a memória das mãos.
Mês passado, revi minha mãe após três anos separadas devido à pandemia e ao custo em barras de ouro de uma passagem internacional. Das muitas coisas que me lembro com afeto sobre minha mãe, a forma como eu me encaixo em seu abraço é uma delas. Você sente isso também? Como seu corpo e o da outra pessoa já sabem se acertar sozinhos? Quando a abracei, senti gosto de casa. E, de repente, aquela mulher com quem eu falava aqui e ali por chamadas de vídeo, mas que não participava efetivamente do meu cotidiano, voltou a ser a minha mãe. Que saudade.
Talvez, assim como um jogador de futebol treina lançamentos de novo e de novo até as pernas saberem sozinhas o que fazer, assim como uma bailarina sabe por instinto deixar a coluna reta, o amor também precise de uma dose de memória muscular. Não à toa, o ser humano fica doente quando privado do tato, e as culturas mais acolhedoras também são aquelas onde o afeto é maior expressado através do toque (petição para reconhecer o cafuné como patrimônio imaterial do Brasil).
Mas vamos voltar a questões mais terrenas.
Às vezes, tento ensinar crochê para amigas, e vejo elas lutando para experimentar a melhor posição da agulha, para dar conta de linha e dedos ao mesmo tempo. “Não levo jeito pra isso, olha como fica tudo frouxo, tu é muito mais rápida, nasceu pra isso”.
Esquecem que o que falta não é dom, é memória. Inclusive, esse é o fator principal da minha paixão por tecelagem. Poder desligar o cérebro e sentir, feito mágica, minhas mãos se movendo sozinhas, a linha deslizando sem esforço, a agulha acertando reentrâncias do tecido apenas por saber que estarão ali. Assim como se aprende a segurar uma caneta sem pensar duas vezes, a agulha se encaixa em meus dedos como o abraço da minha mãe, como o adormecer do meu marido. Do jeito certo. Em calos familiares, velhos conhecidos. Às vezes, tenho até dificuldade de explicar como se faz um determinado ponto sem deixar a agulha emperrar. Tenho vontade de personificar Chicó e seu famoso “não sei, só sei que foi assim”.
Recentemente, comecei a fazer tricô vendo vídeos tutoriais do YouTube. Voltei a ser criança treinando meus primeiros passos bambos. Já xinguei até a décima geração das minhas agulhas (gêmeas malvadas que me obedecem muito menos do que as parentes do crochê). Precisei desmanchar meu suposto cachecol três vezes antes de parar de pular pontos. Normal, estou ensinando minhas mãos. Tentando lembrar como eram as mãos da minha avó.
Hoje, senti pela primeira vez os primeiros indícios de memória muscular. Olhei para a tevê e a mão seguiu em frente sozinha. O tic tic das agulhas está começando a adquirir ritmo e melodia.
Não sei, mas sinto uma satisfação enorme em olhar minhas mãos. Talvez porque elas sejam também um ponto fundamental do meu trabalho (digitando sem olhar o teclado, olha aí mais uma memória), mas talvez por essa sensação de habilidade, de familiaridade. Minhas mãos. Tão minhas, tão cheias de lembranças e afetos, roídas às vezes, porque a dona é nervosa, talvez com marcas de bicada ou cheirando a cebola, quase acertando cortar batatas do jeito da minha mãe, mas sempre reconhecendo todas essas coisas que fazem de mim a pessoa que eu sou.
"Talvez, assim como um jogador de futebol treina lançamentos de novo e de novo até as pernas saberem sozinhas o que fazer, assim como uma bailarina sabe por instinto deixar a coluna reta, o amor também precise de uma dose de memória muscular." essa frase alugou um triplex na minha mente, mas também me lembrou uma frase de Ursula K Le Guin "love doesn't just sit there like a stone. it has to be made like bread, remade all the time, made new".