Esta talvez seja uma newsletter curta — e aberta.
Nos últimos dias, ando vivendo o sonho (lembrando que quem vê close não vê corre, tropeço, trupicão, joelho ralado, olho roxo, dente mole, tremelique de pálpebra, cãibra, samboque arrancado, unha encravada, cabelo caindo, bochecha mordida, azia, gastura e grito no travesseiro) de divulgar meu livro novo, Mariposa Vermelha. O que significa que ando também respondendo a muitas perguntas, e não apenas sobre a história que contei, mas sobre literatura de modo geral. O que me obriga a pensar.
Uma coisa que acho engraçada, quando não sintomática da fantasia, é quando me questionam: “mas e a continuação, quando sai?"
Fico lisonjeada, é claro. Até desejosa de que fosse mais fácil para mim reciclar alguns cenários, uns personagens aqui e outros acolá (odeio fazer worldbuilding).
Mas, ao mesmo tempo, me pergunto de onde saiu tanta ânsia pela continuação de histórias que não necessariamente nasceram para ser séries. As pessoas me perguntam sobre o livro 2 com uma certeza quase assombrosa. É óbvio que vai ter continuação, fala pra gente, vai, não precisa mentir.
E, sei lá, talvez até tenha, porque já aprendi faz tempo a nunca dizer nunca nesse mercado. Ideias funcionam de maneiras misteriosas. Mas sei que não foi assim que planejei de início, nem acho ser algo terrivelmente necessário. Tanto para Mariposa, quanto para Fantasma de Cora quanto para Lágrimas de Carne; três textos que vira e mexe recebem pedidos de ampliação. De alguém que queria ter visto mais.
De novo, eu entendo e aprecio, juro: também adoraria um livro infinito de Corrida de Escorpião onde a Maggie Stiefvater me contasse tudo da infância até a velhice de Puck. Eu super leria. Como autora, eu entendo o quanto é elogioso encontrar um leitor querendo MAIS.
Porém, acho importante entender o que é exatamente esse MAIS. Às vezes, é só nosso apego falando. E é aqui que inicio meu manifesto em defesa dos finais abertos.
Existe uma diferença entre sair do cinema querendo entrar de novo na fila e achar que determinado filme deveria ter durado mais porque não deu tempo de contar aquela história. Sou apaixonada por narrativas com final aberto, mas detesto narrativas sem final. Tiro o chapéu para quem consegue, dentro de uma série, escrever livros que se sustentam por si mesmos, que sabem ter um começo, meio e fim de seus arcos, ainda que a história maior continue em outros volumes.
Porque no fim das contas, é isso, né. São pontos de partida, conflitos e uma resolução, para o bem ou para o mal. O que vem depois, os desdobramentos, o capítulo onde todo mundo casa e tem filhos, isso é granulado por cima do bolo e vai a gosto do freguês.
Fico pensando que estamos muito acostumados a uma ficção mastigada e digerida à exaustão. Franquias que espremem cada história até sobrar apenas o bagaço, vazio de qualquer significado ou possibilidade. Prequels, sequels, reboots. Conteúdos esmiuçando cada detalhe, explicando como interpretar e o que sentir a cada cena. Bastidores. Brinde do McDonald’s. O que é canon, o que é universo alternativo. Embora inegavelmente tenham seu apelo (sobretudo quando lidam com a memória afetiva da audiência), essas coisas nos deixam um tanto sedentários em uma atividade muito importante para a literatura: o preenchimento dos espaços vazios.
A literatura é um grande jogo de prioridades. O que o autor mostra, o que não mostra. Ao descrever uma paisagem, o escritor escolhe a dedo quais características elencar, qual dos sentidos trazer à tona, o que colocar no grande esquema do cenário e também nos detalhes. Ele cria esse enorme espaço vazio delimitado por algumas poucas paredes, uns objetos largados no chão e uma ou duas almofadas, mas o resto, a vida mesmo, quem dá é o leitor. Daí aquela brincadeira de dizer que o autor está morto assim que o livro sai da gráfica. Pura verdade. É tipo aqueles livros de colorir que vêm com números indicando as cores. Ali está o formato de uma flor, ali está a sugestão de como colori-la, o autor brincando com a sua cabeça para que tudo possa convergir em resultado agradável… mas o lápis continua sendo seu.
O final aberto, para mim, é um dos mais belos convites à imaginação do leitor. Ao contrário de livros SEM FINAL, o final aberto amarra todas as pontas soltas e conclui o arco de seus personagens. Ao que ele se propôs, ele cumpre. Porém, deixa espaço para que a história permaneça viva e mutante na cabeça de quem o lê, de modo a produzir um leque de possibilidades que alimenta reflexões mais profundas. Será que casaram mesmo? Será que fizeram aquela viagem? Adotaram o cachorro? É preciso revirar o livro em busca de indícios, é preciso conhecer a fundo aqueles personagens para, com um sorriso bobo, afirmar para nós mesmos, usando o mesmo temor emocionante com que confiamos na boa sorte da vida: não, eu conheço essa pessoa, ela nunca faria isso.
A possibilidade de sonhar e brincar com uma história depois que ela termina é um presente.
De certa forma, sinto como se o livro permanecesse respirando dentro de mim, como se a história extrapolasse o limite das páginas para viver no mundo das ideias. Nem tudo precisa ser explicado, mostrado, falado. Às vezes, a falta de certeza faz parte da magia da coisa, especialmente em obras mais introspectivas, não tão focadas em ações concretas do enredo. Às vezes, apenas a esperança do final feliz faz mais sentido para acalentar o coração do que o desfecho em si. Penso que um livro não precisa englobar tudo para ser profundo, para trabalhar bem seus temas. Ele só precisa fazer sentido no que se propõe.
Uma coisa que acho engraçada é quando alguém me pergunta sobre a minha opinião sobre o futuro de determinado personagem. Como se pudesse arrancar a confirmação de mim. Como se eu pudesse, como autora, definir o que é ou não verdade, enquanto estou ali apenas desejando responder que NÃO IMPORTA. Só respondo pelo que está nas páginas. O resto não me pertence. Não importa o que eu penso. Tenho sim minha opinião sobre os rumos que meus personagens tomam, mas esse ponto de vista é tão válido quanto o de qualquer outro leitor. Uma hipotética resposta de Machado de Assis sobre Dom Casmurro seria suficiente para acabar com a polêmica da traição de Capitu? E daí que o vampiro vai viver para sempre e a mocinha vai morrer de velhice, por que precisamos escrever em pedra o que acontece com eles? E daí se não explicamos como funciona o sexo dos anjos, desde que estes se amem com tanta força que o leitor encolha os dedos dos pés?
Às vezes, não contamos a história de uma vida. Às vezes, contamos a história de um momento, de um amor, de um lugar, de uma revolução. É só uma parte, mas uma parte importante, veja bem.
Que o livro não seja imortal, posto que é chama. Mas que seja infinito enquanto dure. E que acabe quando precisar. Saudade também tem gosto bom.
nossa, disse tanto!
me enerva um pouco a necessidade de cobrir todos os pontos; é tão bom quando a gente tem espaço para respirar e criar dentro de uma história.
essa necessidade de explicar tudo o tempo todo me parece uma coisa muito estadunidense e muito controladora. não é possível nem desejável controlar tudo, a pessoa que escreve não é a dona da obra e a gente precisa ser generoso o suficiente para deixar espaço para o leitor existir ali dentro também.
beijos!
de tudo o que vc disse, o que ocupou um quarto sem pagar aluguel na minha cabeça é: a diferença entre uma história de final aberto e uma história sem final. é isso. rs
sucesso para vc, Fer! sempre ❤️