Eu fico com a pureza
Da resposta das crianças
É a vida, é bonita
E é bonita
Quando eu era novinha, o mundo me parecia muito assustador em sua aleatoriedade. Para alguém tão ligada a narrativas, seja porque consumia muitas ou porque, enquanto seres humanos, somos incapazes de não criar histórias, me parecia uma piada muito de mal gosto que a vida não tivesse uma progressão lógica, um enredo, um arco de personagem. As coisas apenas aconteciam. Porque sim. Porque claro.
Do nada, pá, uma perda. Uma derrota. Uma virada no caminho.
Antes, porém, o caos do mundo tinha para mim o formato de uma moeda atirada no vento: ali estavam as suas chances, andando na corda bamba, de sofrer um revés. E a gente brincava com a sorte e chamava as probabilidades para dançar. A gente se protegia nos números.
Mas isso foi antes. Antes de pandemia, enchente, capa de IA, carro da Tesla, Palestina, aposta esportiva, colapso climático e boiada passando. Antes de eu enfim me enxergar adulta. De alguma forma, algo em mim mudou. Uma percepção de que ficamos mais frágeis, mais suscetíveis, de que ficamos mais perdedores.
Eu espero a desgraça porque amo muito as coisas frágeis.
E estou ficando habituada a perder.
Tenho acompanhado mais de perto o dia a dia de ongs de resgate animal, principalmente aquelas voltadas para outras espécies além de cães e gatos, como a Lar dos Pancinhas e a Menino Vaqueiro, que recolhem jumentos abandonados ou vítimas de maus tratos no Ceará, e a Projeto Mucky, que resgata primatas e cuida daqueles que não podem ser reintroduzidos em seus biomas.
Os pedidos de ajuda não param de chegar. Para cada animal resgatado, são mais dois que precisam de ajuda. Não há dinheiro. Mesmo os resgatados, que me fazem suspirar de alívio pensando “esse aqui pelo menos estará protegido”, na verdade não estão. No mês seguinte, faltou dinheiro para o aluguel, o dono do terreno pediu a propriedade de volta, a conta venceu. Os anos de negligência encurtaram a vida. Uma anemia voltou. A pata infeccionou.
É todo dia, todo dia lutar contra o revés, e tem mais revés do que alegria. Não é mais uma moeda girando no vento, é uma viga desabando. A casa só fica de pé enquanto você aguentar escorar a viga, com as próprias unhas descascando, com os dedos feridos, com os dentes sangrando. Segura tudo nos ombros e reza, reza muito para não deixar cair, só mais hoje, só por hoje, que amanhã ninguém garante.
Um dos casos me marcou muito. Uma jumentinha levou um golpe na pata e foi abandonada para morrer. A ong recolheu. Descobriram que ela estava prenhe. Foi uma luta, porque, enquanto o filhote não nascesse, não dava para fazer muita coisa pela mãe pelos riscos de anestesia e coisa e tal. Ficamos todos na torcida. Semanas depois, nasceu a filhotinha. Era linda, serelepe, saudável. Era um daqueles raros alentos no meio da luta.
Poucos dias após o nascimento, a mãe, com a pata machucada, não sustentou o peso e tombou por cima da filha. A filhotinha quebrou o pescoço e morreu.
Eu não sei dizer porque temos que perder tanto. Perder sempre. Nenhum dos canalhas controlando o dinheiro do mundo tropeça e quebra o pescoço. O revés tem nome e endereço. Quase sempre tem também cor e classe social. Às vezes tem até espécie. O revés não habita carros de luxo, não habita os melhores restaurantes. É como se, ao explorar os outros e acumular recursos, você fosse capaz de manipular também o próprio tecido do destino. E o que se pode fazer contra pessoas que operam em outras probabilidades de acaso? Se nem o caos que é a vida parece tocá-las? E para quem essas pessoas empurram o excedente de revés nunca aplicado?
Você diz que é luta e prazer
Ele diz que a vida é viver
Ela diz que melhor é morrer
Pois amada não é e o verbo é sofrer
Meu amor por coisas frágeis também me tornou controladora. Sobretudo no trato dos insetos/moluscos que por acaso terminam sob meus cuidados. Escrevi um pouco sobre isso em Mariposa Vermelha, sobre como a personagem Amarílis se sente como uma deusa alimentando e protegendo suas lagartas de bicho-da-seda. E, não me entenda mal, é menos pela vaidade de controlar o destino dos outros e mais sobre a paz de espírito de saber que ali, naquele pequeno mundinho contido, nem que seja na área útil de um pote de plástico, você PODE fazer a vida ser intocada pela injustiça dos homens. Próspera. Para aquele pequeno bichinho insignificante cujas probabilidades são ainda menores, você vai virar a balança. Todos os dias, você vai ver o Pantanal queimando e as calotas derretendo e a gente perdendo, perdendo e perdendo, mas ALI… ali o capitalismo não vai estragar nada. Você não vai deixar.
É patético, eu sei. Mas a gente cria as fantasias de que precisa. Sei que não sou a pessoa que estará na linha de frente dando a cara a tapa, e admitir isso é um importante exercício diário de insignificância.
Mas aí… aí vem a vida. Se você me acompanha no Instagram, já conhece Gary, meu caracol de estimação que veio nas verduras e que agora leva vida de realeza, um ser tão frágil e rodeado de ameaças que me causa em igual medida um amor fascinado e mini ataques do coração. Cuidar dele é uma alegria e uma ansiedade constante.
Pois bem. Semana passada, vieram dois bebês nas verduras. Amigos para Gary!, pensei, iludida, achando que, agora que eu sabia como cuidar de um caracol, saberia cuidar de três (eles inclusive prosperam muito mais em bandos). Joga a moeda para o ar.
Mas Gary já chegou até mim em sua forma juvenil, com mais ou menos 0,5 cm de concha. Agora, porém, estamos falando de bebês menores que um grão de arroz, bebês tão minúsculos que passo minutos olhando o potinho de geleia em que eles estão até encontrar os dois e me certificar de que não vou: a) jogar eles foram sem querer juntos dos restos de comida; b) matá-los afogados com uma gota grande demais do borrifador que precisa ser aplicado uma vez ao dia para garantir a umidade; c) soterrá-los com o substrato de fibra de coco especial que precisei comprar online porque qualquer tipo de terra não tratada pode ser fatal.
E, tudo bem, é uma operação delicada, mas uma que eu estaria disposta a encarar por algumas semanas. O problema foi quando eu comecei a pesquisar sobre filhotes de caracol.
No início, eu só queria saber se eles tinham alguma necessidade nutricional diferente dos adultos (e é claro que têm). Mas aí descobri que existe uma coisa chamada runt snails.
Basicamente, o caracol usa o revés inerente à sua espécie como uma estratégia para ajudar os filhotes mais aptos. Ao colocarem seus ovos, eles propositalmente produzem crias mais fortes e melhor formadas e crias mais fracas, com problemas genéticos que as tornarão incapazes de chegar à vida adulta mesmo sob todos os cuidados. A ideia é que os bebês mais fracos sejam predados primeiro, permitindo que os mais fortes cresçam e tenham mais chances.
A natureza, meus amigos, ela adora equilibrar probabilidades.
A quantidade de runt snails (esses filhotes fadados a morrer) é maior em espécies criadas como pets por causa dos cruzamentos consanguíneos, que aumentam o número de mutações das crias. É por isso que, entre os criadores renomados lá das gringas, é considerada uma prática comum fazer o “culling”: a cada duas semanas, compara-se o tamanho dos filhotes e esmaga-se os mais fracos, que depois são dados como alimento para os adultos, uma excelente fonte de proteína. Considera-se que é uma prática mais humana, uma vez que muitos destes bebês iriam definhar e sentir dor antes de morrer.
E se você está lendo isso e sentindo horror, então saiba que me sinto do mesmo jeito. Não vou entrar nessa seara de debater o culling porque dentro de mim existem dois lobos: o primeiro é um ambientalista ferrenho capaz de compreender a amoralidade da natureza e da cadeia alimentar e o segundo é uma vovó coração mole atirando migalhas para os pombos enquanto leva os doentes para casa.
Pois bem. Estes dois bebezinhos de que estou cuidando com tanto amor e carinho podem ser runt snails. Eles podem morrer independente do que eu faça. Talvez seja eu que precise colocar um fim em seu sofrimento.
Não é uma moeda atirada para o ar. É uma bomba-relógio.
Há quem fale que a vida da gente
É um nada no mundo
É uma gota, é um tempo
Que nem dá um segundo
Amo pessoas que estão envelhecendo, e sei que também não tenho mais uma moeda, e sim uma ampulheta. A areia escorre pelos nossos dedos. Às vezes acaba, e me despeço de tempos que, olhando em retrospecto, quase parecem pertencer a outra existência. É mesmo difícil explicar o significado da palavra saudade.
Eu achava que tudo o que eu precisava fazer era torcer por uma moeda. Mas hoje enxergo muito mais vigas, bombas e ampulhetas. A vida é tão, tão frágil.
Na Bienal de Pernambuco, ano passado, fui num dos dias exclusivamente para ver a mesa da Eliane Brum. Queria ouvi-la falar. Gosto não apenas de sua prosa, mas também do seu trabalho ativo no jornalismo dentro das questões ambientais. Diferente de mim, ela é sim uma das pessoas que vão lá dar a cara a tapa todo dia.
Especificamente, eu queria saber como aquela mulher (branca, privilegiada, cheia de prêmios, que podia se dar ao luxo de dar as costas e esquecer todas aquelas mazelas) conseguia suportar tanto revés todo santo dia e continuar existindo. E não se afundar na mágoa, no azedume, não tomar o lugar da dor do outro. Não se tornar fardo da dor do outro. Porque sim, é muito fácil cair na armadilha de transformar a dor alheia numa egotrip. A gente vê o tempo todo nas redes sociais. Empatia também vira vaidade. Dor demais também vira fatalismo.
Tudo que ela falava, porém, ia pelo caminho oposto. Ela mencionava fatos horríveis com muita seriedade e gravidade, mas também com olhos tranquilos. Como alguém muito longe de estar cansada ou amargurada. Falava sobre uma alegria inata à floresta, sobre um amor pela vida que se traduz em teimosia inabalável mesmo diante de tantas derrotas. Ela falou sobre festas, sobre dança. A gente perde porque ama, a gente tem medo porque vale a pena. Porque é bonito. Só dói porque é importante.
Para alguém como eu, uma criaturinha de toca cuja vida sempre foi tão regida pela ansiedade e pelo tremelique no olho, alguém propensa à melancolia, ouvir aquilo foi reconfortante como um abraço. Revolucionário, até (já falei que sou patética).
E, veja bem, não é aceitar passivamente que estamos fadados a perder e ser a última a apagar a luz, mas é escolher estar desse lado mesmo assim. É celebrar tudo o que eu puder e compreender a dor como um efeito colateral que estou disposta a processar para seguir contribuindo nas coisas que acredito. É abrir mão do controle. Eu não faço ideia do que vai acontecer.
Tenho conseguido ficar mais em paz desde então. Ser mais racional não só em entender meu papel em tudo isso como também os momentos e as formas com que posso fazer alguma diferença concreta. Alimento minha alegria com a mesma atenção com que alimento minha raiva. Acho que são duas coisas importantes de se ter dentro do corpo, alegria e raiva.
Eu vou perder muito. Para caralho. E vai doer horrores. Mas eu prefiro assim.
Ah, meu Deus!
Eu sei, eu sei
Que a vida devia ser bem melhor
E será!
Mas isso não impede
Que eu repita
É bonita, é bonita
E é bonita
* Se você curtiu “o teor” desse texto, recomendo a leitura dessa conversa que tive com o Eric Novello na newsletter dele.
* Você também encontra todos os meus escritos publicados clicando aqui.
Esse texto bateu muito fundo em mim. Caramba. Tô no chão. Consegui me ver muito no que você escreveu. Também sou envolvida na causa animal e é muito, muito doído. Cada vitória mínima vem com muita peleja em meio a muitas histórias horríveis. Também me sensibilizo assim com a vida. Em 2021 parei com as redes sociais porque não aguentava mais, minha saúde mental foi embora. Também já tentei entender a Eliane Brum... Muitas vezes já quis não sentir. Ter outra personalidade, daquelas pessoas menos sensíveis, mais deslocadas da vida. Já chorei por causa de ovelha morta pedindo pelo amor de qualquer coisa que eu fosse uma pessoa que sentisse menos. Mas aí às vezes me vem, será que isso é vida, viver sem sentir? Porque o amor que a gente sente nos dói, mas também toma conta de nós de um jeito que às vezes é mesmo muito lindo e justifica a vida, nem que seja por um segundo.
Não é patético ter um coração bondoso nesse mundão destrutivo. É um ato de coragem.
Obrigado por esse texto, Fê. Muita luz pra ti!