Não sei se você acompanha esse lado da minha vida, que costuma ficar restrito ao Instagram, mas sou uma daquelas pessoas fascinadas pelo mundo natural, pela flora e pela fauna, inclusive aquela que passa despercebida no cotidiano urbano. Criar as lagartas que surgiram na minha samambaia e documentar todo o processo. Plantar a batata-doce que brotou na geladeira e ficar intrigada vendo onde aquilo pode dar. Achar um “ovo” de tubarão e tratar como um grande tesouro. Catar tatuí na praia (e soltar, óbvio). Observar onde o carcará resolveu fazer seu ninho e qual o ponto favorito de encontro para as andorinhas no fim da tarde. São coisas que, juro, me fazem feliz e dão mais sentido para esse mundão doido em que a gente vive.
São também coisas que rendem boas histórias. Quase todas as coisas que escrevo partem dessa mistura curiosa entre fatos científicos cotidianos e simbolismos que remetem a relações complicadas ou à simples observação da complexidade que é o ser humano.
Mariposa vermelha, meu novo livro de romantasia a ser publicado em julho pela editora Suma, também saiu desse mesmo balaio. Ele foi escrito na época mais conturbada da minha vida (e do mundo, dado que estávamos no auge da pandemia, sem vacinas), e é uma das coisas mais cruas e honestas que já escrevi.
Deixo a seguir a sinopse:
Na cidade de Fragária, sob o domínio da República, a magia é proibida, e Amarílis conhece como ninguém o perigo de quebrar as regras. Para evitar o destino trágico que teve sua mãe, a jovem tecelã mantém a cabeça baixa e os fios de seus poderes bem amarrados.
Quando, por acaso, se vê diante do homem que causou a ruína de sua família, Amarílis decide convocar um demônio e fazer um pacto: ela quer a morte do general que destruiu sua mãe. Mas sua oferenda é muito simples, e Tolú, o Antigo que atende seu chamado, não pode tirar uma vida por um preço tão baixo. Ele pode, porém, ajudar Amarílis a enfrentar seus medos enquanto ela faz justiça com as próprias mãos.
O livro entrou em pré-venda alguns dias atrás, e, se viver de marketing é preciso e não se pode mais contar com as redes sociais, vamos pelo menos trazer alguma coisa interessante.
Por isso, chamei minha irmã, Gabriela, minha grande companheira de esquisitices cotidianas, uma baita inspiração da minha escrita, para falar um pouco sobre sua experiência criando bichos-da-seda. Foi ela, com suas lagartas pálidas cuja fome quer devorar o mundo inteiro, quem desfiou a primeira ponta do que viria a se tornar um novo livro:
Texto de apreciação do bicho-da-seda
Gabriela Castro
Se eu não fosse designer gráfica, certeza de que seria bióloga ou algo que o valha. Eu e Nanda sempre demos nossos jeitos — muito criativos, diga-se de passagem — de manter os bichos por perto. Quis o destino que, no momento, eu morasse longe dela e da rica fauna a que estava habituada. Portugal é detentor de uma parca, ínfima e ridícula biodiversidade quando comparado ao Brasil. Não há nem mesmo formigas dentro de casa. Há quem veja isso como um ponto positivo, mas, para mim, é algo desesperador. Para quem estava acostumada a ver capivaras, tatuís, saguis e bichos-preguiça fora do zoológico, em seus habitats naturais, com certa facilidade… avistar um humilde besouro em terras lusitanas é motivo de comemoração.
Eis que uma vizinha pergunta, assim como se fosse a coisa mais normal do mundo, se eu não queria umas larvinhas de bicho-da-seda que sobraram da criação da escola do filhinho dela. Oi? Bicho-da-seda, você diz… dos que produzem seda? Seda… de verdade? As gerações mais novas de portugueses não são muito familiarizadas com a sericultura, mas os mais velhos recordam com afeição suas caixas de sapato com as lagartas de estimação e folhas de amoreira carcomidas. E é claro que eu as trouxe para casa, tão franzinas, nem deveriam comer muito. Em algumas semanas, estavam da grossura do meu dedo e fazendo as folhas sumirem em questão de minutos. E só comem folhas de amoreira. Me transformei numa traficante de folhas dos parques, fornecendo alimento não só para as minhas lagartas como também para as da vizinha, que também não sabia no que tinha se metido.
Enquanto as bichinhas ruminavam, claro que passei noites pesquisando o fascinante mundo delas. Claro que tirei 7674566789 fotos. Fiz questão de mostrar todo o ciclo e metamorfose em detalhes, com direito a observação em microscópio, para o meu filho. Tudo o que eu ia aprendendo, contava para minha irmã, em conversas intermináveis ao telefone. Eu sabia que ela compartilhava do mesmo entusiasmo.
Reza a lenda que a descoberta da seda ocorreu na China, quando um casulo caiu das árvores dentro da xícara de chá da então Imperatriz Leizu. Com a ajuda do calor da bebida, ela foi capaz de desenrolar o fio do casulo e enrolá-lo no dedo, percebendo, assim, que este era contínuo. Como cada casulo pode render de trezentos a novecentos metros de fio, eu imagino a cara lá da Leizu, enrolando e pensando “WTF”… O cultivo é conhecido desde 3500 a.C. e foi mantido em segredo até 550 d.C., quando vários ovos foram contrabandeados por monges persas para Constantinopla. É ou não é uma história de filme?
Mas as informações que pude adquirir ao vivaço foram igualmente fascinantes: enquanto devoram as folhas, as lagartas de Bombix mori fazem um barulhinho bom de chuva fina no telhado. Seu “sangue” (hemolinfa) é azul, por ser baseado em cobre e não em ferro como o nosso, podendo ser visto, a olho nu, sendo bombeado através da pele do seu dorso!
São gostosas de tocar: sequinhas, geladas, sedosas. Com pezinhos de ventosa que grudam. Não mordem. Trocam de pele várias vezes enquanto vão crescendo. Fazem cocô em forma de mini amoras. Na maior parte das vezes, na indústria da seda, são impedidas de se transformar em mariposas para que não danifiquem seus casulos: são fervidas vivas dentro deles e viram petiscos em alguns países. Mas não na minha casa, obviamente.
Elas tecem seus casulos fazendo movimentos de cabeça que traçam um 8 (ou símbolo do infinito) repetidas vezes. Ás vezes, acontece de duas lagartas se fecharem dentro de um mesmo casulo. Se forem macho e fêmea, nem chegam a sair. Lá mesmo viram mariposas, lá mesmo acasalam, botam os ovos e lá mesmo morrem. Lagartas de bicho-da-seda só pensam em comer. Mariposas de bicho-da-seda só pensam em f****. De fato, os adultos não possuem nem boca! A especie original — Bombyx mandarina — tinha tons de marrom e asas bem desenvolvidas. Com a domesticação, perderam a pigmentação e a capacidade de voar. Algumas lagartas sequer conseguem sair sozinhas do casulo (dá para perceber quando isso acontece porque o casulo fica vibrando e nada de rasgar). Ou seja… o bicho-da-seda é praticamente o pug das mariposas e não consegue mais sobreviver sem o “auxílio” humano. Imagina a frustração quando entendi que não iria libertá-las da janela do apartamento e assistir ao glorioso voo inaugural.
Guardei rolinhos de papel higiênico e fiz um grande mural com eles para pendurar na parede. Cada lagarta escolheu um para se alojar e tecer, e então só restava a espera e a ansiedade. De noite, na cama, eu ficava pensando que coisa louca que era aquilo. As lagartas dissolvem seus próprios tecidos e os reconfiguram em novos órgãos dentro de “úteros” de seda: a lagarta gesta a si mesma.
Foram duas semanas com surpresas diárias e apostas de quantas iriam emergir no dia, às sete em ponto da manhã. De ver pupas dançarinas se retorcendo e machos garbosos penteando as “sobrancelhas”. Observar a micro gotinha de líquido desfazedor de seda sendo secretada para rasgar o casulo. Asas amarrotadas se esticando. “Mijadas” na parede e as gargalhadas que se seguiam ao susto. Assistir à eficácia imediata dos feromônios. Namoros que duravam horas. Ovinhos que mudavam de cor conforme estivessem fertilizados ou não.
Agradecer Momo, Godiva, Jackson, Elsa, Zé Seda, Tiananda, Luna, Muna, Zé Bonitinho, Jaci, Otto, Selena, Bazófia, Magali e todas as outras pelo aprendizado. Soltá-las na natureza para passarem as poucas horas de vida que possuem encarando coisas mais bonitas do que uma caixa de plástico. Guardar os casulos “estragados”. Descobrir a técnica de extração artesanal chamada mawata que resulta num fio mais rústico, porém igualmente… fascinante!
Bem, se você chegou até aqui, considere dar uma olhada na pré-venda de Mariposa vermelha (estamos com brindes!). Há bastante coisa tecida e emaranhada na trama dessa história, prometo, incluindo o carinho de duas irmãs com seus bichinhos esquisitos e um oceano Atlântico entre elas.
EU FUI EU TAVA (via instagram, e amei acompanhar essa aventura de sua irmã!)
Cresci em uma casa onde tínhamos de atravessar a rua ao ver uma lagarta, tamanho o pânico da minha mãe. Com a idade, fui deixando esse ponto de lado (até porque passei a ser responsável por tirar as lagartas do caminho de minha mãe).
Fiquei muito surpreso quando vi Fernanda criando lagartas em casa. Impensável para mim.
Ver o relato de sua irmã é apaixonante.
Óbvio que seriam farinha do mesmo saco. Da melhor qualidade.
Apenas sucesso para vocês. Em todas as suas loucuras!