Às vezes você fica doente, acorda com a garganta coçando e tosse até expelir uma coisa esquisita e disforme na pia do banheiro. De onde veio isso, meu Deus? Será que tô morrendo? O engraçado é que, às vezes, a gente coloca no papel essas coisas esquisitas.
Saiu um conto meu (traduzido por Hache Pueyo) na edição de maio da revista The Dark, especializada em histórias mais obscuras de horror/terror com toques de especulativo. Como o texto está em inglês — e como gosto muito dessa história meio sanguinolenta que coloquei pra fora —, pensei ser uma boa ideia publicar a versão em português por aqui, de modo a chegar em mais gente.
O banner a seguir é uma cortesia do sempre inigualável Dante Luiz.
O VERSO É SEMPRE ENTRANHA
por Fernanda Castro
Áries: Por mais infinita que pareça a linha, o novelo sempre acaba. Tudo bem se os arremates saírem feios. O verso de uma costura é sempre entranha.
O horóscopo do jornal traz manchas cor de âmbar nos pontos onde o papel entrou em contato com a umidade do tecido morto. Você encara as letras borradas, pensando no quanto soa patético ler seu signo, por alguma espécie de condicionamento ou costume, nas mesmas páginas que enrolaram o corpo frio de seu pai durante dias, agora exposto na própria nudez sobre a mesa de granito logo ao lado. É ainda mais patético que você tenha tido esperança de encontrar algum conforto na familiaridade daquele ato.
Ele amava os jornais de domingo. Dizia que começara a comprá-los apenas porque precisava de material para acondicionar os animais no freezer antes de poder trabalhá-los, mas você sabe que é mentira. Vocês iam toda semana até a cidade, na Brasília caindo aos pedaços que fora do seu avô, para fazer a feira e trazer o bendito jornal. Às vezes, paravam no acostamento da BR para inspecionar o corpo de algum bicho atropelado ou abatido pelas dificuldades da vida. Você sempre voltava com algum tesouro: uma garra, um dente, uma pele seca de cascavel. A lembrança coloca um sorriso triste em seu rosto.
Eram apenas vocês dois pela vida inteira, pai e filha na casinha colada com a mata, um tanto ausentes para o resto do mundo, mas realizados na crença silenciosa de que estavam acima daquelas pessoas carentes de existência que dependiam da fumaça e dos empregos da cidade grande. No caminho para casa, você lia o horóscopo em voz alta para ele.
Foi com seu pai que você aprendeu a amar tudo que é natural, todos os bichos e plantas e pedras e sons. Sangue e ossos também, porque a vida não se priva de ser feia e não se importa com as delicadezas de ninguém, o que é uma espécie de beleza. De tudo isso, vivendo com seu pai, você teve dificuldade apenas para amar a morte.
A taxidermia, ele explicava, é um modo de preservação do que é belo e amado. Uma das poucas formas de parar o tempo.
A palavra parece formal demais para algo tão poético, mas você o ajudava mesmo assim, observando e aprendendo, exibindo as peças empalhadas na beira da estrada aos fins de semana para turistas curiosos, recolhendo troféus de caçadores, recebendo cães e gatos enrolados em mantas.
Há algo de especial em ser uma garota crescendo com o pai em uma casa sempre cheia de morte e olhos vítreos. Ele se torna sua referência, seu herói. Alguém inquestionável. Tudo o que você quer ser é metade do que aquele homem já foi, tudo o que você deseja é ver nos olhos dele que você é digna de carregar aquele legado, de merecer quando alguém diz que vocês estão ficando tão parecidos.
Ele é o seu propósito e o seu objetivo.
E é por isso que você o colocou em cima da mesa. É por isso que pegou o estojo com as ferramentas. Porque soa errado continuar em frente sem aquela bússola. A taxidermia é um modo de preservação do que é belo e amado, e você o considera perfeito. E talvez, enfim trabalhando ao lado da morte, ela permita a você ficar com algum pedaço.
Touro: Lembre-se de que às vezes precisará deixar que eles vejam essa sua ânsia, o modo como a luz incide nos seus dentes enquanto você saliva.
O primeiro passo são as medições. Você respira fundo, apertando a prancheta e a fita métrica contra o peito, e se aproxima da mesa. Observa as feições rígidas do homem à sua frente.
Ainda não chorei a sua morte, pai, porque você me ensinou que os verdadeiros fortes sabem segurar as lágrimas e eu jamais me perdoaria de ser fraca perto de você. Não. Você tinha de mostrar que estava pronta, que fora bem treinada para suportar aquilo tudo. Por isso acordou todos os dias sem reclamar, cuidando dele enquanto a doença o tomava, fingindo que não estava com medo.
A primeira coisa que você nota é o quão pouco do seu pai está ali. Os números que você anota na prancheta não mentem, ainda que você precise medir duas vezes para acreditar que não está fazendo nada errado. Os braços dele, capazes de empurrar um carro inteiro naquele dia em que a Brasília ficou atolada na chuva, agora são mais finos que os seus. Os joelhos salientes têm mais diâmetro que as coxas, as mesmas que percorreram por quilômetros incansáveis os matagais nos fundos da casa. A pele dele é fina, marcada.
Você não sabe por que está tão surpresa. É claro que você notou. Você só fingiu não notar para que seu pai não descobrisse, porque achou que doeria demais nele perceber a própria decadência. Seria melhor poupá-lo disso. E assim você se adiantava, colocando as coisas dele em posições um pouco mais fáceis, aplainando e limpando a trilha por onde ele andava, desligando o fogão sempre que ele esquecia, sem dizer nada.
As medidas na prancheta não mentem: seu pai não era infalível. E você sabia.
Gêmeos: Você vai se atirar em uma chama tal qual uma mariposa atraída pela luz. Eu entendo, é difícil resistir. Mas certifique-se de escolher uma fogueira pela qual vale a pena queimar e se deixar consumir.
Para os mamíferos, após medir e pesar, é hora de esfolar a pele, escolhendo os melhores pontos de corte para preservar os tecidos. Com o bisturi na mão, você está suando. Parece algo impensável causar dano à figura de seu pai. Mas você vai fazer isso por ele.
A pele está gelada e seca. A lâmina desliza, e você sente o cheiro de carne que há por baixo, tão parecido com o de qualquer bicho que já esteve naquela mesa de taxidermia. Seu pai não reage enquanto você lentamente empurra o bisturi em um movimento de vem e vai, separando músculos e tendões, tentando manter a espessura do couro uniforme, mas você sente cada golpe. Você não é muito boa naquilo. Há uma dor gelada correndo em sua espinha, e seus cortes são cheios de imperfeições. Aos poucos, porém, você levanta as camadas de pele como quem descasca uma fruta. Por baixo, apenas um amontoado vermelho de olhos arregalados e dentes tortos que é digno de pesadelos. Você sabe que nunca vai ser capaz de esquecer aquela visão. É o tipo de coisa que deixa marcas e danos irreparáveis. Você sabe que precisou matar algo dentro de si para cumprir aquela tarefa, algo de que você gostava. Mas é seu dever. Tudo por ele. Em lealdade ao seu pai, é justo que você se machuque no lugar dele. É uma espécie de dívida que vocês têm.
Tentando não pensar muito no que está em suas mãos, você separa o invólucro de seu pai em um balde e se prepara para fazer o decalque do que restou do corpo.
Ao seu redor, dezenas de olhos de vidro observam seus movimentos.
Câncer: Cate uma pedrinha da próxima vez que sair de casa. Repare na forma, na textura, na cor e no modo como ela esquenta sob o sol, transmitindo toda a calidez para a sua mão como se estivesse viva. Você vai se sentir melhor.
Você sempre achou terrível a existência de um signo com nome de doença. Ainda mais agora que você a conheceu tão de perto. Com um toco de carvão, você percorre os contornos esfolados do homem que já foi tudo na sua vida, criando uma espécie de registro no papel carbono que há por baixo. Agora que seu pai não passa de um amontoado úmido brilhando sob a grande lâmpada amarela no teto do galpão, é desolador ver que ele é apenas um homem mortal como qualquer outro. O câncer pintou vários de seus órgãos em preto, e tudo parece frágil, uma engrenagem forçada a aguentar muito além do limite. Você lembra de quando seu pai lhe ensinou a estimar a idade de um animal morto, uma habilidade que você considerava genial, uma verdadeira arte. Um dia ele lhe trouxe um gambá extremamente velho, já sem nenhum dos caninos. É como se você pudesse ver que a carne está cansada por dentro, entende?
Você entende. Você está vendo.
Devagar, cada parte é empilhada em uma grande caixa de plástico.
Leão: Você, que sempre se olhou no espelho esperando se orgulhar do que via, agora teme erguer o rosto e encontrar algo além de si no reflexo. Olhe. Está lá, é terrível, e é importante saber.
A folha manchada do horóscopo te olha novamente do ponto onde você a pregou na parede da cozinha. Julgando a sua demora. Você disse a si mesma que precisava de uma pausa para descansar e fazer um lanche, mas quem consegue comer em meio a isso tudo? Na verdade, você veio até a cozinha apenas para não sentir o cheiro, apenas para respirar em um lugar cuja vista não contenha a vigília de animais mortos em cada parede. Porque você é covarde e está começando a sentir pena de si mesma, dominada pelo horror da situação.
Aquilo dispara uma espécie de orgulho ferido em seu íntimo. Seu pai jamais fraquejaria naquele cenário, então você que não ouse ceder um milímetro.
Trincando os dentes, você retorna ao galpão, limpa a superfície da mesa com uma série de gestos metódicos e estica a pele dele em cima do granito. Ainda é ele ali, cabelos, cílios e cicatrizes que você conhece tão bem, mas, murcho daquele jeito, com buracos vazios no lugar das órbitas e da boca, maleável feito borracha, ele parece mais uma fantasia a ser vestida. Ou um fantasma do que era. Você imagina a sensação de vestir a pele de seu pai e sente asco de si mesma.
É preciso virar a pele do avesso para aplicar algumas das inúmeras soluções capazes de preservar o couro contra a ação do tempo. Lentamente, a pele esfolada vai soltando suas impurezas, coisas que você jamais acreditaria pertencerem ao corpo de mártir do seu pai. Não, não ele. Não o homem perfeito. Ele não podia estar sujo.
Com um sorriso triste, você pensa que, revirando seu pai entre os dedos, talvez o esteja olhando com sinceridade pela primeira vez. Ele nunca foi perfeito.
Virgem: Hoje é um daqueles dias em que você gostaria de arrancar suas raízes, revirar a terra e extirpar tudo que há de podre por baixo. Hoje é dia de vingança, dia de reparação. Mas você precisa trabalhar.
Alguém está batendo na porta da frente. Inesperado. Você veste seu melhor rosto como se fosse uma armadura.
A mulher parada de braços cruzados no jardim é sua tia. Não tia de verdade, vocês não têm o mesmo sangue, mas ela é dona do posto de gasolina mais adiante onde seu pai deixava você brincando quando ainda era pequena e ele precisava resolver algum assunto só de adultos. O pessoal da sua região também costuma receber correspondências no endereço do posto, já que os Correios não atendem no meio da mata: as vans amarelas não suportam a estrada de terra.
A mulher sorri para você e pergunta por seu pai, que não dá as caras no posto já faz semanas. Você responde que ele ainda está de cama. A mulher lamenta, e os olhos de sua tia parecem realmente tristes quando ela estende um maço de envelopes na sua direção. Você agradece a gentileza e fecha a porta.
Em outros tempos, você levaria os envelopes até seu pai e esqueceria completamente deles. A vida era simples, e seu pai tinha tudo sob controle. Mas agora você não tem mais com quem contar. Talvez pudesse contar com sua tia, mas prefere resolver sozinha: você já é adulta, afinal, e seu pai lhe preparou para não depender de ninguém além dele. Você consegue resolver sozinha.
Os envelopes são uma coleção de mais do mesmo. Conta de luz, renovação da licença de motorista, uma propaganda de cartão de crédito para moradores rurais. Você dá apenas uma olhada tediosa naquelas páginas que parecem te dizer que o mundo continua lá fora ainda que você deseje gritar para todos os seres vivos que o seu pai morreu.
Mas um dos envelopes é diferente. Grande, branco, com o nome do seu pai protegido por um quadrado de plástico, a marca do banco no verso. Ele abriga uma quantidade surpreendente de páginas.
Você lê e relê, murmurando em voz alta as partes mais críticas: empréstimo… impossível renegociar prazo… cliente em situação de doença grave… negado… parcelas restantes… congelar bens.
As cifras são tão altas que te dão dor de cabeça. Você corre até o antigo quarto dele, ainda com todos os pertences no lugar, e vasculha a primeira gaveta onde seu pai costumava guardar a contabilidade da casa. Você revira as pastas, folheia o caderninho de despesas. Em uma página qualquer, as anotações das quais você nunca ouviu falar e que agora pesam em seu coração como um segredo nefasto. Seu pai estava quebrado e devendo dinheiro. Você não faz ideia de como ele deixou as coisas escaparem ao controle desse jeito. Refazendo as contas, você percebe que seu pai simplesmente não tinha um plano, seguindo em frente mês após mês enquanto fosse possível, crédulo demais de que as leis imediatistas da natureza o proveriam no mundo dos homens. A palavra mais gentil com que você pode classificá-lo é “displicente”.
A descoberta da dívida dói menos do que descobrir, outra vez, que seu pai não era perfeito. Pior, descobrir que ele sequer cogitou conversar sobre aquilo com você ainda em vida, mesmo sabendo que a deixaria sozinha para resolver as coisas. Mesmo sabendo que você deveria estar indo para uma faculdade em vez de para um galpão de taxidermia.
Talvez seja a primeira vez em anos que você sente raiva dele, que você cogita a hipótese do seu pai ter pensado primeiro em si e depois em você. De que seu pai pudesse ter vergonha de admitir um fracasso. Uma lágrima quente escorre em sua bochecha, mas você a limpa depressa como se fosse uma heresia.
Não importa. Amanhã você vai até o posto e vai ligar para o banco. Sozinha.
Libra: Escolha seu pior demônio. Convide-o para uma dança. Você é uma pessoa terrível dançando. Mas o demônio não se importa, contanto que você não vire o rosto.
Houve um dia em que você quebrou o braço enquanto brincava no córrego do terreno vizinho ao da casa. Você estava sozinha e ficou em pânico ao se perceber sem ajuda. Seu pulso pendia em um ângulo estranho, e a dor era tanta que você via pequenas estrelas nos cantinhos da vista. Prestes a desmaiar, você cambaleou com todas as forças para achar o caminho de volta, rezando, implorando para conseguir chegar até seu pai antes de perder os sentidos. Note que você não temia exatamente o braço quebrado, os perigos da mata ou o desmaio em si. Você temia apenas não alcançar seu pai, porque é claro que, uma vez que estivesse nos braços dele, tudo ficaria bem. Você ainda lembra a sensação de paz no momento em que o rosto dele virou e os olhos dele encontraram os seus. A certeza absoluta e aliviada de estar em segurança. Naquele dia, você desmaiou tranquila, sabendo que acordaria em um lugar melhor. E de fato vocês riram: seu horóscopo da semana dizia que era hora de viver uma grande aventura.
Você relembra tudo aquilo com certo distanciamento enquanto separa os materiais para montar o esqueleto da peça empalhada. Arames, fios e enchimento em palha e algodão para simular os volumes do corpo. A taxidermia tem seus encantos artísticos, e é uma pena que você não seja lá muito talentosa.
Primeiro, você precisa decidir a posição em que o deixará. Talvez de pé, admirando o céu estrelado com as mãos ao redor dos olhos? Ou talvez com as pernas afastadas, estendendo a mão com um semblante gentil para firmar você em alguma parte escorregadia da trilha?
Nada do que você tenta dá certo. A estrutura sempre parece engessada demais, pouco natural ou sem equilíbrio. Parece formar mais um manequim de loja do que um ser humano.
Mas a quem você quer enganar? Quanto tempo faz desde que você não o vê naquelas poses heroicas?
Em um raro momento de honestidade anestesiada, você decide que precisa enxergar o homem que estava por baixo das suas camadas de idolatria. Seguindo apenas a intuição, você retorce cada pedacinho dos arames na posição onde costumava vê-los, e de repente o esqueleto de seu pai está sentado em uma cadeira, a coluna levemente encurvada, a mão direita massageando a coxa, a esquerda apoiando a cabeça, os dedos percorrendo os cabelos ralos.
Você dá alguns passos para trás e avalia o resultado. A postura parece um tanto triste, mas também parece correta.
Escorpião: Rasgue uma página do seu livro favorito. Decore as palavras que estão ali. Você vai precisar lembrá-las. Vai precisar, porque depois vai queimar o papel na boca do fogão, sorrindo para as cinzas. Aquelas palavras são só suas.
Você volta ao quarto dele para escolher uma muda de roupas, sapatos, tudo que ele usaria em um dia comum. Imagina que seria bom ter algum item especial para adicionar ao trabalho, como uma herança de família ou o relógio que ele ainda guardava desde os tempos de escola, e por isso percorre as gavetas do armário.
O que você não esperava encontrar era uma caixa de cadernos e cartas amassadas e nunca enviadas, fragmentos de si que seu pai derramava no papel e depois escondia do mundo. Você se senta no chão e perde horas naquela caligrafia. Letras de música, poemas, confissões, pedidos de perdão e desenhos de partes mortas de animais atropelados.
Seu pai era cheio de arrependimentos, cheio de ausências e inseguranças. Culpa-se pela morte da sua mãe, acha que você está a um passo de descobri-lo como uma fraude, afoga as mágoas bebendo no posto nos dias em que você precisa dormir na cidade para fazer prova. Acima de tudo, teme morrer sozinho. Finge não estar com medo para não parecer fraco diante da filha.
Finalmente, você se permite chorar, um choro dolorido que transborda em ondas incontroláveis, porque, no fim, vocês estavam mentindo um para o outro. No fim, você só queria ter podido abraçar seu pai e dizer que estava sim em pânico e que precisava sim de ajuda para dar conta de tudo.
Na falta dele, você abraça as cartas.
Sagitário: Dói. Eu sei. Você não consegue parar de reabrir essa ferida. Dói. Mas é tão bonito ver a cor do sangue brotando por baixo, tão vermelho e tão vivo. Você ama a sensação da vida.
O dia já está se pondo quando você retorna ao galpão sob o voo rasante dos primeiros morcegos. Sua cara está péssima, o nariz escorrendo. Você já sente o corpo cansado como se estivesse prestes a pegar uma gripe.
Assim que abre a porta para a sala de taxidermia, você se assusta com o cheiro e com o zumbido das moscas. Algo está errado. Você corre até o outro lado da mesa e descobre que esqueceu de tampar a caixa de plástico onde guardou os órgãos de seu pai. As moscas-varejeiras estão fazendo um verdadeiro banquete. Com gritos de “não! não!”, você tenta espantar os insetos, chacoalha a caixa, abre uma janela. Mas de nada adianta. Você está tão cansada, e é tão repulsivo olhar aquela cena, que sua única vontade é poder atirar tudo para longe e esquecer sua própria história. Você se sente egoísta e ingrata, mas de repente você deseja não amar tanto o seu pai. Seria tão mais fácil. As moscas zumbem no seu ouvido. Você cai de joelhos com a caixa no colo e chora outra vez, porque é uma injustiça gigantesca que aquele dia continue adicionando mácula após mácula no corpo e na memória santificada do seu pai.
Eu quero que ele volte a ser perfeito, você murmura para os próprios joelhos.
Mas isso é impossível.
Capricórnio: Tire os sapatos, só por hoje. A maré precisa lamber seus pés para que você entenda a graça que há na constância de algo infinitamente mutável. De novo e de novo.
Vestir a pele do seu pai no modelo de arame e palha é mais difícil do que você imaginava. Por um momento, você esquece o simbolismo do que está fazendo e se concentra no esforço mundano de levantar toda aquela pele e tentar esticá-la nos suportes.
Seu pai tinha um jeito especial para a taxidermia, isso não se pode negar (e ninguém vai tirar isso de você). Ele seria capaz de empalhar um elefante naquele galpão de teto baixo. Você nunca vai ser tão boa. A bem da verdade, você nem sabe se gosta daquilo, porque agora você xinga e se frustra a cada etapa, incapaz de manter a concentração em uma tarefa tão minuciosa. Talvez você nunca tenha gostado da taxidermia, mas sim de observar seu pai trabalhando. Em determinada altura, você cai de bunda enquanto tenta encaixar o quadril dele e acaba soltando uma risada. Não há nada de engraçado em uma cena que é completamente mórbida, mas chorar já perdeu o encanto. Você acaba de descobrir que o riso é o quinto estágio do desespero.
No futuro, você vai aprender que pensar em si mesma como mais uma pessoa patética tentando levar a vida é justamente uma das chaves para a paz de espírito.
Aquário: Olhe para o céu e encontre um passarinho. Lembre como era quando você ainda pensava ser capaz de voar. Lembre que ninhos são fragilidades resistentes. Construa bem o seu.
Você respira fundo e deixa os ombros penderem com o alívio de um trabalho enfim terminado. Seu pai está vestido, penteado e perfumado, sentado à mesa da cozinha. E você até gostaria de poder dizer que ele parece vivo, prestes a se mexer, mas o resultado de toda a sua dedicação é uma paródia de homem caindo aos pedaços.
Suas costuras são péssimas, e dá para ver os pontos onde a linha repuxa a pele e deforma os contornos dele. Na falta de réplicas humanas, você precisou usar um par de olhos caprinos, o que deixa seu pai com a expressão insana e arregalada de um alienígena. A estrutura de arame também não ficou muito bem ajustada, e, olhando de longe, você percebe agora que ele está com um braço maior do que o outro.
Você nunca acreditaria que aquele é o seu pai. Você deu tudo de si, tudo o que podia, sangue e suor e lágrimas, e ainda assim é impossível preservá-lo. É preciso encarar a realidade: ele está morto. Você é incapaz de reconstruí-lo ou de tomar seu lugar. O único lugar onde a taxidermia funciona é na sua memória. Lembranças empalhadas de momentos mais felizes, inalcançáveis pelo tempo. A única coisa que você, como filha, pode fazer por ele é criar uma caricatura do homem que ele foi.
Você está começando a entender o que precisa ser feito. Apesar do tempo perdido, não lamenta o trabalho que teve: ele foi importante para que você pudesse dizer adeus e fazer as pazes consigo mesma.
Antes que perceba, você está conversando com o cadáver de seu pai. Fala para ele o quanto o ama, o quanto se ressente, o quanto sentirá saudades. Lamenta não ter quebrado aquele vínculo idealizado antes, porque isso aliviaria o peso para ambos. Pede desculpas por não poder realizar os sonhos dele, porque entendeu que aquilo não seria justo. Com um nó na garganta, você conta que não concorda com tudo e que as verdades que serviram para ele talvez não sirvam para você. Afirma que vai lembrar dos bons momentos, promete tomar cuidado.
Você continua falando até já ser madrugada, até sua voz ficar tão áspera quanto o pio das corujas.
Peixes: Amanhã você odeia. Amanhã você pondera sobre o quão errada é toda essa situação, sobre o quanto de você já foi consumido e sobre o quanto você se sente sufocando. Amanhã. Hoje você ama.
Deixá-lo ir talvez tenha sido o maior gesto de amor que você poderia fazer por ele. O único lugar onde seu pai permanece agora é dentro de você. Permanecem, aliás, porque agora existem vários deles. O pai que socorreu um braço quebrado. O chefe de família cheio de dívidas. O homem arrasado pela perda de um grande amor. O idoso que se recusava a ser ajudado. De certa forma, agora seu pai pode ser ele mesmo, uma grande inconsistência sobre duas pernas, assim como você. Falível. Humano.
Você é melhor do que ele em algumas coisas, pior em outras. Por isso mesmo, é hora de encontrar seu próprio caminho.
Você fecha a porta de casa e passa a chave pelo trinco, apenas uma mochila nas costas. O pouco dinheiro que havia na gaveta está dentro do seu tênis, no pé esquerdo. Tirando os itens mais básicos dos seus pertences, você está levando apenas um dente de jaguatirica, uma pena e a casca seca de uma cigarra dentro de uma lata. Não teve coragem de levar os animais empalhados. Que eles fossem junto com o dono: aqueles não eram seus súditos.
O cheiro de fumaça começa a empestear o ar noturno. Quando você se acomoda no banco da frente da Brasília, o terreno ao redor já está iluminado de vermelho pelas chamas que consomem o galpão.
Deixe queimar.
Não é que não esteja doendo ou que você não tenha vontade de correr para salvar tudo do fogo, incluindo os restos do seu pai, mas é que você aprendeu com ele a ser firme nas suas decisões. Você só precisava aprender a decidir sozinha.
Deixe queimar.
Não tem como dizer o que seu pai acharia disso tudo. Se estaria orgulhoso. Mas você se sente mais leve sem o peso da obrigação quando dá partida na Brasília, e o carro velho treme por inteiro. Em cima do toca-fitas, você apoia a página manchada do horóscopo de jornal. Foi a única lembrança que resolveu levar do seu pai, a que você achou mais genuína. Amor, sangue, risos e futuros impressos em papel.
Você segue pela estrada, com o ar da noite balançando seus cabelos, e sente pela primeira vez que é dona do próprio destino, não importa o que as estrelas digam.
Caso este texto tenha ressoado de alguma forma e você deseje conhecer mais dos meus trabalhos, lá no meu site tem a lista completa de tudo que publiquei (incluindo algumas obras gratuitas). Lembrando também que meu novo romance, Mariposa Vermelha, está em pré-venda pela Editora Suma. Esse último, principalmente, tem uma vibe até que parecida com este conto.
Até mais e obrigada pela companhia.
Perdi a conta de quantos "bah!" larguei enquanto acompanhava a história. Parabéns!
Ótimo conto!!! Ansioso para ler mais textos seu