Às vezes eu falo de regatas no Capibaribe
A newsletter de hoje é um “diário de bordo” para a escrita do conto “No mar, ele sempre ganha”, publicado gratuitamente pela Revista Pretérita agora em dezembro. Antes de continuar com o texto, recomendo que você leia a história! De qualquer forma, pode deixar que eu aviso quando começarem os spoilers.
Eu nunca sentei um belo dia e decidi que só escreveria narrativas com elementos fantásticos. Foi algo que aconteceu, porque esse é mesmo o modo como meu cérebro escolhe traduzir sentimentos, situações e conceitos. Também ajuda o fato de que consumo quase que diariamente histórias de fantasia, seja lá em qual mídia, e que possuo verdadeiro fascínio por animais e criaturas monstruosas.
Então, quando a Anna Martino veio falar comigo em julho, com um convite para fazer parte da nova edição da Revista Pretérita, meu primeiro pensamento foi: socorro.
Preciso escrever uma história sem nenhum elemento fantástico? Mas nem um realismo mágico assim escondidinho? Nem um rabinho de demônio escapando por baixo da toalha da mesa da cozinha? E ainda precisa ser uma ficção histórica?
Bem, não sei você, mas é contra os meus princípios dizer não para Anna Martino. E assim o desafio estava lançado.
1 — Escolhendo tema e período
Já que eu precisaria fazer um esforço maior para pensar numa história “realista” e com alguma base histórica, achei que era uma boa ao menos escolher um tema pelo qual eu também fosse apaixonada. Na época do convite, estávamos super em clima de Olimpíadas (que parece que aconteceu já faz anos, mas foi mesmo só uns meses atrás). E eu curto demais acompanhar esportes, principalmente de equipe, principalmente futebol (viva o Liverpool, You’ll Never Walk Alone, Mo Salah entre na minha casa etc etc). Mais que isso, um dos meus prazeres secretos é ver vídeos mostrando o dia a dia no CT de times de futebol. Existe algo de mágico em um bando de gente gostosa de atletas no ápice de suas carreiras tendo que conviver, seguir táticas, lidar com a frustração, a pressão, a competitividade, e ainda tirar sarro um com a cara do outro como uma boa família meio besta. CTs de futebol tem uma energia de festa do pijama com campo de batalha, de lazer com trabalho ou de suor com dinheiro que me fascina (e que sempre me rende boas ideias para dinâmicas entre personagens, até porque cada time tem uma personalidade diferente nos bastidores, e dá para sentir). Com as Olimpíadas, aí é que eu fiquei com os dedos coçando para escrever a história de alguma equipe mesmo.
Então era isso: se eu fosse escrever sem elemento fantástico, iria escrever sobre um time de futebol.
Só tinha um problema no meu caminho: o tema da edição da revista era “corpos d'água”. Oceano, lago, rio, piscina no quintal, tava tudo valendo, desde que tivesse relação com a água. E futebol, como você deve ter notado, não é a mais aquática das modalidades.
Mas tudo bem, não me deixei abater. Futebol tá rolando aí pelo mundo há séculos, devia existir algum episódio histórico envolvendo essas duas coisas, alguma conexão que eu pudesse fazer.
Comecei a pensar na história dos clubes que eu conheço mais de pertinho. E logo lembrei que um dos maiores times aqui em Recife se chama, tchan tchan: CLUBE NÁUTICO CAPIBARIBE. Porque, antes de serem equipes de futebol, boa parte dos times centenários do Recife eram CLUBES DE REGATAS.
Fez-se a luz. Eu iria escrever sobre uma equipe de remo em pleno Capibaribe na época das primeiras regatas. Rio, futebol e tempero de casa. A receita estava pronta… ou pelo menos era o que eu achava.
2 — Pesquisa
Eu não sou uma profunda conhecedora/estudiosa de ficção histórica, mas, para mim, existem dois jeitos de fazer uma trama do tipo:
Você faz uma pesquisa extensa e meticulosa que te permita um domínio preciso de datas, nomes, lugares, costumes etc. Geralmente, mas não sempre, as narrativas deste tipo lidam direto com os eventos importantes, tendo até mesmo alguns personagens históricos envolvidos na trama.
Você faz uma pesquisa direcionada que te ajude a pegar o sabor daquele período. Tem que usar a manha. Você captura termos, um linguajar aqui e ali, detalhes para compor o cenário. Uma mentira envelopada em pequenas verdades. Não há tanto rigor histórico, mas você consegue transportar o leitor para a época desejada e lançar um grande E SE.
Escolhi a segunda alternativa, até por uma questão de tempo e espaço: eu não teria dias o suficiente para pesquisar tudo o que queria, e um conto não me daria oportunidades o bastante para contar a história e ainda mergulhar no cenário da época. Eu faria um recorte. Uma história afetada pela história do mundo, mas sem participação direta. Fosse lá o que eu resolvesse fazer, eu não poderia, de forma alguma, mudar os rumos dos eventos ocorridos. Eu não poderia, por exemplo, mudar os vencedores de uma regata oficial e bem documentada.
Uma coisa boa sobre futebol é que seus torcedores são sempre muito passionais e orgulhosos, então você pode ter fé de que, em algum lugar, alguém compilou até a cor da cueca usada pelo técnico em mil oitocentos e bolinha.
Peguei meu bloquinho e uma caneta.
Comecei pelos arquivos do Náutico, tanto os sites oficiais quanto blogs de torcedores e historiadores esportivos. Como esperado, eles não só me deram as informações que eu precisava como também me apontaram outras informações úteis, como o preço dos ingressos na arquibancada em 1855 (três mil réis a cadeira, mil réis a geral) e mesmo músicas e poetas da época. Tudo isso ajudou a compor o cenário.
Depois, encontrei um estudo riquíssimo no site da Confederação Brasileira de Remo, de autoria de Henrique Licht, que fornece as datas exatas de cada competição oficial realizada no Brasil e também o nome dos vencedores e toda a evolução das embarcações e diferentes modalidades ao longo do tempo.
Mas, quanto mais eu pesquisava, mais incomodada ia ficando. Havia algo ali que eu não estava levando em consideração.
3 — Um esporte raramente é só um esporte
Às vezes, confesso, eu fico chateada com quem se julga melhor que os outros por não gostar de futebol (na real, ô povo chato é quem se acha melhor que os outros, né?). Todo mundo tem direito a não gostar das coisas, mas é de um reducionismo tão grande dizer que futebol é só homem hétero bebendo no bar e soltando fogos para assustar cachorro (embora tenha disso também).
Futebol é tão mais. É política, comunidade, paixão e crença. O esporte foi usado, e ainda o é, para aflorar emoções, afirmar identidades, unir grupos de pessoas. Depois de anos vivendo sob o jugo de uma política de bíblia, boi e bala, creio que, a essa altura, você acredite no poder de um símbolo. O quanto forças poderosas brigarão até se estraçalharem pelo controle dele. E o que é um time, um escudo, o peso de uma camisa… senão um símbolo? É por isso que é sempre importante quando um jogador se manifesta politicamente, coisa que muitos ainda não entendem.
Sugiro fortemente que você assista o primeiro episódio do documentário This is Football (Prime Video), que fala sobre o papel do futebol durante e após o genocídio de 1994 em Ruanda. O episódio é pesado, de embrulhar o estômago, mas extremamente didático. Caso prefira uma leitura rápida, recomendo também esse fio do Twitter sobre como o esporte está sendo utilizado hoje em Ruanda, especificamente no caso do Arsenal, e esse outro, sobre como o jogador Reinaldo peitou os militares argentinos.
Nas Olimpíadas, mais gente acaba sendo afetada por essa magia do esporte. A pele fica arrepiada, sentimos vontade de abraçar estranhos, criamos arcos narrativos de superação. Não à toa, tantas iniciativas de amparo à criança e ao adolescente começam no esporte. Ouvi em algum lugar, que não me recordo agora, que atletas de alto rendimento são como deuses sofrendo feito humanos. Afinal, os gregos usavam as modalidades olímpicas como uma celebração das capacidades humanas, né? Uma afirmação sobre a natureza. Nós vemos os atletas falhando, vencendo, suando, chorando. A trajetória de um atleta é uma trajetória coletiva, conterrânea, fraterna. Em pleno Brasil 2021, as Olimpíadas me fizeram, pela primeira vez em anos, ver uma bandeira do meu país e não sentir um amargor profundo. O esporte tem esse poder de nos fazer pensar que para tudo ainda existe jeito. Emociona feito arte, inflama feito paixão, divide feito política. E provocar esse tipo de reação em um povo, com um alcance tão amplo em termos de recortes sociais, é algo almejado por muitas forças… para o bem e para o mal.
A final da última Libertadores evidencia bem um esporte que já integra a cultura do país, um evento que mobilizou pessoas além de barreiras de credo, cor, classe social ou região do Brasil. Quantas celebrações assim a gente tem durante o ano?
Mas voltemos às minhas pesquisas.
Quanto mais eu lia sobre as primeiras regatas organizadas em Recife, mais eu percebia que:
Como boa parte dos esportes elitizados, o remo (e, por muito tempo, o próprio futebol) foi um instrumento de segregação na cidade. Era praticado sobretudo pelos descendentes ingleses que habitavam a província, um esporte de nobres, de elite. As competições eram verdadeiros eventos de gala, com a presença de militares e políticos. Recife, afinal, sempre teve esse fascínio pelo refinamento entre sua população mais abastada, um desejo de tomar chá com o dedinho levantado. Mas a organização e disciplina das regatas contrastava com a movimentação no cais do Porto do Recife, com seus armazéns, com seus marujos de pele escura.
O rio Capibaribe tem um peso histórico muito grande para a cidade, tendo influenciado em muito a urbanização e a política, sendo um ponto de encontro para realidades muito diferentes. Nos primeiros anos da década de 1880, militantes abolicionistas usavam o Capibaribe para transportar negros escravizados escondidos em barcaças de capim até o Ceará, onde a abolição já fora estabelecida.
A primeira grande regata organizada na cidade, exatamente a que eu queria usar como pano de fundo, teve um caráter absolutamente político: comemorava o regresso das tropas pernambucanas que haviam lutado na Guerra de Canudos. Caso você não tenha muita familiaridade, explico: a Guerra de Canudos foi uma campanha da recém-formada República para conter o progresso de uma pequena comunidade autossuficiente fundada na Bahia, sob a liderança de Antônio Conselheiro. Após uma seca prolongada, muitos sertanejos (entre brancos, descendentes indígenas e quilombolas), abandonados pelas autoridades, juntaram-se às fileiras do líder religioso em busca de terra e algum senso de pertencer. O assentamento de Canudos começou a ganhar força e renome, começou a virar símbolo. Sem pagar impostos e resistindo a uma série de investidas do exército, Canudos se tornou uma pedra no sapato da República, que resolveu lhe fazer de exemplo. Em 1897, tropas lideradas pelo general Artur Oscar de Andrade Guimarães, um pernambucano, eliminaram a comunidade, matando cerca de 25 mil pessoas. Antônio Conselheiro foi morto, seu corpo deixado para apodrecer ao ar livre, em exibição. A cabeça foi cortada e levada pelos militares como troféu. E era esse retorno que a regata celebrava. Um espetáculo para reforçar o poderio dos mais abastados, uma exibição de poder a fim de manter determinadas pessoas em seus devidos lugares. É claro que esse é só um resumo grosseiro de tudo o que aconteceu, reduzindo pessoas a papéis de vilania/santidade que não existem com tanta clareza, mas você entendeu. De qualquer forma, a Guerra de Canudos está bastante documentada (e você pode ler também Os Sertões, de Euclides da Cunha, ainda que se apontem críticas ao autor por seu determinismo racial).
Mas cê viu o tamanho do buraco?
Se eu fosse apenas retratar um grupo de remadores competindo em uma regata, ignorando todo o contexto por trás, então eu estaria caindo na falácia de que o esporte é só esporte, de que ele não causa impactos mais profundos e transformadores.
Ao mesmo tempo, se eu me debruçasse muito nas questões políticas e sociais, eu corria o risco de 1) soar didática, pegando o leitor pela mão e 2) não ter espaço para fazer nada além do superficial, mais do mesmo. Uma salada de problemas sociais sem nenhuma fibra.
Então eu decidi que iria contar a história de duas pessoas. Decidi que o remo seria o tema central a unir os personagens, mas que a vida deles também seria influenciada pelo contexto histórico, pelas tensões políticas que os rodeavam. Mas não necessariamente o cerne do conto.
E foi assim que Alvinho e Cícero nasceram.
4 — Execução
* SPOILERS A PARTIR DAQUI *
Comecei a esboçar o enredo, vendo o que funcionaria ou não no espaço de um conto. Minha ideia era usar um recurso comum da ficção e que também acontece bastante na vida real: a amizade que se desenvolve na infância, alheia aos abismos sociais, e que depois vai sendo atropelada pela percepção da realidade, sobretudo na adolescência, uma fase de inseguranças e despertar de novos interesses. Dois amigos de infância apaixonados pelo Capibaribe, um herdeiro de família rica e um filho de prático do porto, convivendo ao mesmo tempo com a nata da sociedade recifense e os marujos e trabalhadores dos armazéns. E é claro que eu dei um jeito de enfiar romance no meio.
A parte de Cícero foi relativamente simples. Ele é um personagem fácil de se gostar, pois é leal, destemido, com um pouco mais de consciência sobre o mundo e uma raiva cozinhando em fogo baixo no peito. Mas centrar a narrativa em Cícero, no caso da história que eu queria contar, tornaria a coisa panfletária demais. O melhor protagonista para vivenciar aqueles eventos políticos seria mesmo Alvinho, até por ser ele a figura que realmente ocupa aquelas duas realidades.
Esse deu mais trabalho. Eu precisava que as pessoas simpatizassem com Alvinho. Embora estivesse na posição de poder dentro do enredo, eu não queria fazer dele um vilão ou um cara burro, porque isso seria simples demais, raso demais. E, ei, eu estou escrevendo uma história de romance, certo?
Alvinho tinha que valer a pena, tinha que despertar nem que fosse aquele suspiro frustrado do leitor que se depara com a impossibilidade do amor entre Romeu e Julieta. Eu queria que as pessoas ficassem com raiva dele, mas daquele jeito que ficamos quando vemos alguém querido tomando uma decisão ruim. Então, resolvi simplesmente fazer dele um iludido, haha. Cercado de privilégios, Alvinho demora a enxergar a realidade que o envolve sem as lentes cor-de-rosa de herdeiro, para quem tudo parece possível na empolgação da juventude. Fiz questão de colocar isso explícito em alguns momentos, como quando Alvinho sonha em ser forte e ter bigodes bonitos para remar com Cícero no Capibaribe, ou quando observa os músculos da própria perna, sentindo o corpo de homem que se forma por baixo da roupa. Para Alvinho, o mundo é cheio de possibilidades, de futuro, de delícias a provar (seria Alvinho um fundador de startup?).
O próprio nome foi uma escolha deliberada. Álvaro é um nome com uma carga antiga, histórica, sendo também um recurso de ambientação. Mas o apelido, Alvinho, além de nos fazer pensar em “branco”, também passa a ideia de “castidade”, “inocência”, “ingenuidade”. Bem a cara do nosso panaca. Em última instância, Alvinho erra por vergonha, por finalmente enxergar sua realidade de privilégios e não ter fibra suficiente para suportar reconhecê-las expostas diante do próprio nariz.
Note que a única vez que Cícero chama o outro de Álvaro é no último diálogo, quando então o coloca na mesma categoria de todos os outros patrões do porto.
O resto foi composição de cena e amarração de todas as variáveis envolvidas para fazer parecer que a história de Cícero e Alvinho estava entremeada com a história real do remo (o Club de origem inglesa, a Guerra, o casamento com Catherine — cujo nome também brinca com um significado de pureza —, as referências às embarcações reais que competiram nas regatas e a futura agremiação composta de trabalhadores do porto, o Club dos Pimpões, que mais tarde daria origem ao Náutico).
A prosa também precisou ser adaptada para ajudar na ambientação. Palavras com sabor mais antigo, como “rapazote” ou “bancarrota” foram incluídas, e optei que os personagens utilizassem a conjugação do “tu”, primeiro porque é assim que falamos em Recife mesmo (embora a gente conjugue o “tu” igual ao “você”) e segundo porque dá esse ar de novela de época. Ah, e usei e abusei de palavras com sentido náutico ou que fizessem alusão à água para assim seguir com o tema (e para parecer que Alvinho sabia mesmo o que estava fazendo, já que eu, hahay, não sei identificar nem o que é estibordo e bombordo).
Por último, tomei um monte de liberdades (e espero que ninguém me processe), porque, afinal de contas, o que é uma boa história de ficção senão uma mentira carregando boas verdades, não é mesmo? Mas espero, de coração, ter capturado um pouco do gosto e do perfume da época, do caldeirão de sentimentos que sucedeu a Guerra de Canudos e de dois jovens apaixonados que não sabiam nada bem o que fazer com tudo aquilo. Uma das coisas mais legais da ficção histórica é dar cara e sentimento para fatos que, de outra forma, talvez passassem batidos no fantasma dos números.
Se você ficou comigo todo esse tempo e ainda não leu o conto, perde tempo não. Espero que goste. :)
Um OBS:
Na edição passada desta newsletter, comentei sobre livros paradidáticos que me marcaram, citando, entre eles, o livro As Batalhas do Castelo do Domingos Pellegrini. Eis que uma das assinantes da news tinha o contato do Domingos e encaminhou o texto para ele! Trocamos alguns e-mails (eu tendo um ataque cardíaco a cada letra), e o Domingos, que é tão gentil quanto Bobuque, teve o carinho de me mandar dois de seus livros, autografados. Achei que seria legal compartilhar essa história. A gente nunca sabe onde ou quem os nossos escritos vão atingir. E tem surpresas boas esperando na próxima margem. Um muito obrigada para a Priscila por ter sido ponte. <3