Às vezes eu falo de farras
Dia desses, uma leitora querida me perguntou quais as inspirações por trás do conto “O último unicórnio de Serrita”, publicado na coletânea Farras Fantásticas. E percebi que nunca escrevi ou fiz qualquer fio no twitter sobre essa história, como era o plano, simplesmente porque o livro foi lançado no olho do furacão de problemas familiares e de saúde que foi o meu 2021.
Então vamos fazer isso hoje.
Quando recebi o convite para fazer parte do Farras (abraço pra Ian, Ricardo e João), a proposta era bem clara: escrever um conto que se passasse em uma festa típica do seu estado e que estivesse dentro do gênero fantástico.
Cheguei a pensar no Carnaval, no São João, mas queria algo que fosse realmente único de Pernambuco e que estivesse um pouco mais por fora do radar das outras regiões. Entrei num site de turismo e comecei a percorrer o calendário de festas do meu estado. E foi aí que o nome me saltou aos olhos: Missa do Vaqueiro. Voilà.
A Missa era um cenário muito favorável para o que eu gosto de escrever. Muito bicho, muita natureza, influência do catolicismo, a vibe das cidades do interior. E, tudo bem, nunca fui pessoalmente à Missa, mas tinha amigos que já foram para me ajudar com os detalhes e já vi/li inúmeras reportagens sobre o evento (a Missa tem uma cobertura bem ampla na imprensa local). Se eu revirasse pela memória, com certeza conseguiria tirar uma história dali.
Porém, eu sabia muito sobre a festa em si, mas quase nada sobre sua origem. E, quanto mais eu pesquisava, mais ficava encantada com as coincidências, os simbolismos e a verdade por trás da Missa.
Não seria um exagero dizer que a premissa do conto praticamente se escreveu sozinha. A história de Raimunda e do unicórnio encourado é obra minha, mas todo o resto é obra da vida.
Tudo começa com um vaqueiro chamado Raimundo Jacó.
Os vaqueiros (assim como os peões de Pantanal, só que em outro bioma, com outro contexto, outras vestimentas e outros costumes) são responsáveis pela lida diária do gado. Separar e contar as cabeças, mudar de pasto, laçar novilhos… uma relação muito próxima entre humano, cavalo e boi. E, de vez em quando, os vaqueiros precisam correr atrás de uma rês fujona em meio às matas espinhentas da caatinga.
Também dizem que, quanto a recuperar boi perdido solto no mundo, Raimundo Jacó era o melhor de todos.
Nascido em 1912 na cidade de Exu, a inteligência e a valentia do rapaz logo fizeram dele um vaqueiro de respeito. Perseguindo o gado fugido a pé ou a cavalo, apenas na companhia de seu cachorro chamado Brasileiro, Raimundo acabou conseguindo, anos depois, um emprego no Sítio Lajes, em Serrita, onde conheceu o colega Miguel Lopes. Mal sabia ele que acabara de selar seu destino.
Certo dia, uma novilha chamada Itagé, muito querida e valiosa para o patrão, desgarrou do rebanho e se embrenhou no mato. Uma comitiva foi formada para recuperar a rês, incluindo Miguel e, claro, Raimundo.
A partir daqui, a história ganha alguns contornos especulativos. Não temos exatamente provas do que aconteceu, apenas os relatos das testemunhas e as histórias passadas de pai para filho entre os vaqueiros.
Dizem que havia um certo clima de competição no Sítio Lajes. Mais especificamente, fala-se da inveja que Miguel sentia de Raimundo e seus dotes quase sobrenaturais para achar o gado, do ciúme que sentia pelo colega andar nas graças do patrão. (Na minha fanfic, Raimundo era aquele tipo de cara que sabia perfeitamente que era foda e não fazia questão de esconder.)
Pois bem, a comitiva saiu em busca de Itagé. A novilha disparou ao ser avistada, e os vaqueiros acabaram se separando num galope desenfreado. Jacó, muito mais habilidoso, conseguiu seguir sozinho o rastro da rês. E capturou mesmo Itagé.
Dizem que, depois de colocar o chocalho e o cambão (eu acho que o nome é esse) na vaca e amarrá-la em uma árvore, Raimundo parou para fumar um cigarro. De costas, não viu a aproximação do colega Miguel, que, furtivo e movido pela inveja, catou uma pedra afiada no chão e assassinou Raimundo com um golpe atrás da cabeça em 8 de julho de 1954. No fim daquele dia, Miguel voltou para o Sítio Lajes sozinho.
A história nunca foi provada pela polícia (que também não parecia láááá muito disposta a investigar). Tudo o que se sabe é que o corpo foi encontrado na manhã seguinte. Raimundo estava caído ao lado da rês ainda amarrada. Em volta do cadáver, o fiel cachorro Brasileiro velava o dono e espantava qualquer urubu ou carcará que tentasse beliscar o homem morto.
O triste fim do maior vaqueiro que já se viu em Pernambuco foi uma tragédia que abalou bastante os sertanejos. Mas ela bem poderia ter sido só mais uma em meio a tantas histórias de violência, não fosse por um detalhe insignificante…
Lembra que eu falei que Raimundo nasceu em Exu? Você conhece alguma outra pessoa que por acaso veio de lá?
Eis que Raimundo Jacó era primo de ninguém mais ninguém menos que Luiz Gonzaga. Ele mesmo. O Rei do Baião.
Inconformado com o assassinato do primo e o descaso das autoridades, Gonzaga compôs uma de suas músicas mais icônicas como forma de protesto: A Morte do Vaqueiro. Dá uma conferida na letra. Quem não se arrepiar já está morto por dentro.
Agora, para continuar a história, preciso fazer um pequeno desvio e explicar que Pernambuco teve uma forte tradição de padres envolvidos em questões políticas e sociais, principalmente nessa época em que a seca ainda era o temido flagelo nordestino. A paróquia, mais do que um espaço de reza, era também uma espécie de quartel-general/sindicato para a comunidade cujas desigualdades continuavam sendo ignoradas (é claro que nem todas foram assim, mas você me entendeu).
Um desses padres foi João Câncio, que havia acabado de assumir a paróquia de Serrita. Certo dia, andando pela região na companhia de alguns moradores, acabou parando no local onde Raimundo morrera e ouvindo toda a história. Ficou compadecido. Percebeu o tanto que a figura daquele homem havia tocado a vida dos sertanejos, e como poderia virar um símbolo. Viu também que muitos se ressentiam por Raimundo ter morrido sem confissão e em um crime jamais julgado.
Foi daí que veio a ideia. Em 1970, João Câncio foi se juntar com Luiz Gonzaga e o poeta e repentista Pedro Bandeira (não, não é o autor de Os Karas) a fim de celebrar uma missa em homenagem a Raimundo, que serviria também para fortalecer a identidade dos vaqueiros, a fé e o orgulho de Serrita. Além dos três organizadores, a solenidade contou também com membros da família e amigos do falecido.
O evento foi um sucesso. Começou a atrair gente de fora. Com o tempo, o que era uma missa local foi se transformando em um espetáculo da fé. O turismo ganhou força, chegaram os shows e as barraquinhas de comida. Competições, pousadas, o comércio da cidade lucrando no rastro do vaqueiro assassinado. O Sítio Lajes acabou virando o Parque João Câncio, local oficial da festa agora promovida com verba da prefeitura e outros patrocinadores.
E é verdade que a Missa mudou muito. É verdade que algumas coisas se perderam, não temos mais a tal “Missa raiz”. Mas o momento de fé dos vaqueiros segue preservado. Dizem que é muito emocionante de assistir (eu choro só vendo vídeos, então imagine…).
Os vaqueiros saem em peregrinação de suas casas, montados e com todas as proteções de couro, rumo ao Parque João Câncio. Seguem cantando e rezando, até acabar aos pés do altar. Uma refeição é servida, e todos comungam. Há também a hora do ofertório, onde cada vaqueiro sobe até o celebrante e deposita uma peça de equipamento sobre a toalha de linho, para servir como homenagem e ser abençoada.
É o tipo de coisa que mexe comigo, que me coloca para pensar, a mente fervilhando de histórias. A fé, a política, a cultura, tudo converge em uma só celebração. O turismo dos visitantes, a realidade dos moradores. São muitas nuances, muitas camadas. Uma festa com assinatura de Brasil.
Existe um documentário curtinho bem legal sobre a Missa, com depoimentos do próprio Pedro Bandeira e onde também aparece o filho e alguns amigos de Raimundo.
Tá, mas você acha que acabou? Como a gente adora uma boa fofoca, escuta só essa: João Câncio não foi padre a vida inteira. Na verdade, ele largou a batina……… porque se apaixonou por uma moça!
Helena Câncio, a “mulher do padre”, comeu o pão que o diabo amassou (com o perdão do trocadilho) para viver uma história de amor proibido. Nos dias de hoje, agora viúva, é ela que organiza e está à frente da Missa, assim como os filhos do casal. A história de Helena é cheia de percalços e curiosidades: em entrevista, Helena explica que foi João Câncio quem deu em cima dela primeiro e que depois chegou até mesmo a ser apedrejada na rua.
(Pensando bem, acho que dá pra tirar umas vinte histórias só com os causos dessa Missa…)
Algumas curiosidades pra encerrar:
O vaqueiro de empreitada, cargo perigoso e que requer muita habilidade na montaria, acabou dando origem à pega do boi, uma competição de captura de rês que confere muito prestígio entre os vaqueiros — além de prêmios em dinheiro. Na Missa do Vaqueiro, ocorre a famosa pega do boi de porteira, quando a rês é solta a partir de um brete e perseguida por um par de vaqueiros, que devem trazer a plaquinha pendurada no pescoço do animal no menor tempo possível. Sabe o documentário que citei logo ali em cima? Foi dele que peguei muitos dos trejeitos e linguajares de Raimunda, como o “terminar a pega com sangue no olho”). E sim, existem mulheres campeãs de pega.
Apesar de ter dado origem à festa, o nome de Raimundo Jacó não rendeu lá muito dinheiro. Em 2015, o filho mais velho do vaqueiro lendário ainda morava em uma casa de taipa. Em 2017, faleceu aos 81 anos, após finalmente, e graças aos esforços da Associação Cultural Raimundo Jacó, receber uma residência de alvenaria.
Miguel Lopes nunca foi acusado formalmente de nada, mas levou uma vida difícil e arredia no sertão, sendo meio que um pária.
Talvez você queira ler mais das minhas histórias?
Cof cof. Se você chegou até o final desse texto e ainda não leu “O último unicórnio de Serrita”, a coletânea da Editora Corvus faz parte do Kindle Unlimited e conta com vários autores maravilhosos (e eu).
Você também pode aproveitar para conhecer Lágrimas de Carne (uma noveleta de fantasia sombria e outra história minha ambientada em Serrita por uma coincidência do destino) e O Fantasma de Cora (romance lançado pela Editora Gutenberg que é praticamente uma novela das seis — A Giu Domingues definiu como “Agatha Christie encontra Chocolate com Pimenta”, então quem sou eu pra contrariar).