Gosto de gente com olho sereno, que te olha enxergando — acho o ápice do desenvolvimento humano. Gosto de gente que escuta. Que fala manso. Escutar está se tornando algo cada vez mais raro. Todo mundo só quer falar, mas ninguém escuta de verdade. Ou, se o faz, só quer escutar o grande, o que está acima. Esquece de olhar para o chão. De escutar os pássaros. De não pisar nas formigas.
Tenho feito da escuta um exercício diário, porque sou muito faladeira, sabe? Uma matraca desde criança. Não é que eu não me interesse pelo que a pessoa está dizendo, muito pelo contrário, mas tenho tanta ânsia em participar da conversa e contar minhas impressões e trazer algum fato científico que descobri nos últimos dias… que às vezes não deixo o silêncio fazer sua parte. Mas a troca não pode soterrar a comunicação. O silêncio em uma conversa é tão importante. Ele convida a outra pessoa a dizer mais, a ter tempo de organizar o que está pensando e sentindo. Ele lembra que nem tudo é sobre você. Tenho medo de virar alguém que faz arte e fala mais do que escuta. Me parece um destino terrível.
Esses dias, dei uma palestra para alunos do curso de escrita criativa promovido pelo Elf, da UFMG. Falei para eles sobre como é importante um autor treinar o olho para enxergar muito antes de sequer se preocupar com os aspectos técnicos da escrita. É algo que o Jeff VanderMeer já dizia em seu aclamado livro WonderBook: não pode existir um autor que não tenha certo deslumbramento pelo mundo, certa ânsia em observar as coisas. Me assusto com pessoas para quem a vida ao redor é só paisagem de janela. Gente que passa todo dia na frente da mesma árvore e nunca parou para olhar as folhas. Enxergar é treino. É habilidade adquirida. Igual fazer supino.
Talvez conviver com caracóis esteja lentamente (risos) alterando a química do meu cérebro. É muito contraproducente que sejamos criaturas tão cíclicas e que, depois de um período hiper produtivo e acelerado, eu esteja pra lá de lerda, calada e quieta. Estou olhando muita coisa. Estou ouvindo muita coisa. Estou me permitindo ver tartaruguinhas nascerem na praia. Tenho tirado um prazer enorme em cuidar da casa. Na contramão do que eu deveria estar fazendo, pensando na minha carreira e em todas as oportunidades que podem nos sorrir após um holofote inesperado, eu só quero ficar quietinha aqui no meu canto olhando tudo — ao mesmo tempo que sinto FOMO e me ressinto de não estar dando conta das coisas, porque além de cíclico o ser humano é burro paradoxal.
Estou escrevendo, estou mesmo. A história mora na minha cabeça já faz mais de ano, já teve trechos reescritos e caminha para, com alguma sorte, chegar na metade do manuscrito nos próximos dias.
Mas é uma história estranha.
Não de um jeito “nossa, Fernanda, você vai revolucionar o mercado com um estilo ousado de vanguarda!!”, mas sim por ser uma história onde nada acontece e onde passo muito tempo resumindo coisas e descrevendo personagens que estão parados num canto. Sabe aquela máxima do show don't tell? Pois eu vou tell pra caralho e não vou te show nada. É um livro que dá trabalho de escrever, que avança devagar, que me deixa maluca e me faz rir de desespero. Ele me toma muito e é uma batalha avançar a cada parágrafo. Imaculada me cansa.
Mas é exatamente o que eu quero escrever agora. A história não me deixa, não me larga.
O engraçado é que, quando me perguntam qual minha visão para esse livro, eu sempre imagino aqueles calhamaços velhos e mofados que você encontra certo dia na casa de uma tia, tenta ler, acha meio chato, uma galera de nome estranho, deixa de lado, mas continua voltando e voltando, até o dia em que ele finalmente te conquista.
O que significa que é de propósito. Eu realmente, conscientemente, quero criar um livro que te obrigue a ir de-va-gar. Qua-se-pa-ran-do. Es-cu-te-o-som-do-ven-to. Vou saber fazer isso com maestria? Não faço ideia, e talvez você acabe abandonando o livro na metade por ser um pé no saco. Tudo bem, sem ressentimentos. Eu tentei. Você também.
Mas no fim das contas, acho que é um reflexo do meu próprio mundo interior, do que ando cozinhando nesse grande aulão de yoga infinita em que pareço ter me metido. Quando estava com muita raiva, saiu Mariposa. Agora que meu corpo se vê desesperado por descanso e contemplação, está saindo Imaculada. Para lembrar que, apesar da pressão, apesar de toda essa ansiedade de pegar o microfone e dizer ao mundo que vale a pena me ouvir, que eu sou interessante também, que eu mereço um centavo da moeda mais valiosa que temos — a sua atenção —…
… quando não se tem o que falar, é melhor ficar calado e reduzir o barulho.
Tenho repetido isso como um mantra. Sempre que me culpo por não estar produzindo, por não ter a mesma velocidade que colegas mais ágeis, por não ter chegado em todos os lugares que eu gostaria de chegar.
A vida acontece. Para além de qualquer controle, de qualquer planejamento. Perdi uma das minhas porquinhas esse ano, e, durante os dois meses e pouco de sua doença, ela foi meu mundo inteiro. E muita coisa que eu achava inegociável foi se ajeitando, mudando de prioridade. É claro que ainda preciso honrar compromissos, assim como todo mundo. Não se trata de ser irresponsável ou niilista. Mas tem muita coisa que eu ainda tenho gana de conquistar, que ainda me faz brilhar o olho e que, ao mesmo tempo, não me parece mais tão urgente.
Teve uma entrevista que circulou esses dias pelo Instagram onde o Antonio Banderas conta para a Meryl Streep sobre a jornada dele ouvindo ópera. Sobre como ele demorou para se conectar com determinadas peças que achava uma chatice, de como precisou insistir e se esforçar para criar uma conexão, até que tudo se encaixou e ele teve o prazer de acessar todo um novo mundo de significados.
Deixando de lado o ar intelectualóide da coisa (tenho minhas dúvidas se ele se esforçaria tanto por algum conteúdo artístico que não carregasse o mesmo status social de uma ópera ou de um grande clássico literário cujo autor já morreu faz tempo), eu gosto muito dessa mensagem de que a arte não é passiva, que também exige algo em troca de quem a contempla. Nuance também é músculo, arte também é repertório. A gente tem que estar disposto a se frustrar e a ter paciência, a não apenas “consumir”, essa palavra ingrata. E não, isso não significa ficar por aí abraçando livros que não te agradam só para atingir algum tipo de senso de superioridade cultural. Mas sim dar tempo às coisas, se dar tempo e entender que evoluímos o tempo todo. Sabia que eu tentei ler Morro dos ventos uivantes quando era adolescente e detestei? A ironia foi que anos depois, já adulta, me chamaram para traduzir o livro. Tive que ir frase a frase e prestar atenção, tive que sentar a bunda e entender de verdade o original. Hoje, é um dos meus livros favoritos.
Virar gente demora (ou nunca acaba). Saber o que falar demora. Saber o que escrever, meu deus, demora horrores. Pior, exige a tentativa e o erro. Talvez eu esteja escrevendo um livro ruim e nem sei. Talvez eu vá precisar “perder” uns anos e nem sei.
(E você aqui lendo esta newsletter e achando que ia aprender algo interessante comigo hoje.)
Ontem estava eu vendo a novela Vale Tudo na companhia das amigas. Tem um personagem, o Rubinho (que é um trambiqueiro, mas vamos fingir por ora que não é), que, sentado ao piano dedilhando uma ideia, atrasado para ir trabalhar, responde ao colega de quarto: “Eu tô atrasado no tempo dos homens, mas e no tempo da música?”
E pra fechar falando em música, tem uma do Braza que gosto muito (já comentei que é minha banda contemporânea favorita? Adoro o que eles fazem com as palavras em português), que diz bem assim:
Que vencedor que nada… Eu não tô aqui pra competir
Quem foi que disse que a vida é uma competição?
E aí compete marido com mulher, vizinho com vizinho
Irmão com irmão, colega com colega
E nessa sociedade competitiva
A minha derrota é a minha vitória
Deixo também, como um convite, dois exercícios:
Responder “eu não sei” ou “eu não entendi” assim de coração aberto, sem se sentir mal por isso ou pior do que ninguém, quando perguntarem sua opinião sobre algo que você de fato não domina e que está no ápice da discussão nas redes (no momento vou te responder isso quando você me perguntar sobre o final da série Adolescência).
Conhecer o perfil da Mary Jo Hoffman, autora do livro STILL, que te convida a olhar com atenção para os detalhes de pequenas coisinhas insignificantes da natureza pelas quais você passa todos os dias.
Você sempre ensina nos seus textos. Aprendemos muito nesse também.
Cada dia sou forçado a ir com mais calma. Observar e guardar cada momento. Virar pai fez isso.
E está me punindo quando tento correr (tudo que faço com pressa, tem dado muito errado).
O mundo realmente precisa desacelerar, parar e observar. Ouvir.
Muita coisa pode ser vivida no silêncio.
Amo o silêncio. É um de meus tópicos preferidos. Coleciono tudo a respeito, músicas, poemas, artigos, filosofias... E a música que mais me lembra sobre isso é "Fala", do Ney Matogrosso. -- Continue a escrever o que está escrevendo. Acredito numa mística da escrita... se você está escrevendo sobre isso, então isso te escolheu para escrever sobre...