Às vezes eu falo de ecossistemas e ilhas
Antes de começar, um breve aviso: talvez você seja assinante da finada Destinos Traçados e esteja sem entender o que tá acontecendo: ao criar esta nova newsletter, desassociada de qualquer blog ou promessa, tomei a liberdade de importar a lista de contatos antiga. Mas, ei, muita coisa mudou nos últimos dois anos, então fique à vontade para ficar ou sair, tá bem? Eu entendo.
Eu li um livro!
Meninas Selvagens, romance de estreia de Rory Power, chegou ao Brasil pela Galera Record com tradução de Marcela Filizola.
Ambientada na Escola Raxter, um internato para meninas ricas em uma ilha remota, a história aborda as consequências da Tox, uma doença misteriosa que afeta todos os seres do lugar, corrompendo corpos e mentes, provocando estranhas alterações que vão desde galhos brotando de locais inconvenientes até pessoas com cabelos que brilham no escuro. Isoladas da sociedade, à mercê das Forças Armadas e sofrendo com a falta de comida e outros recursos, as garotas precisam lidar com o avanço da doença e com as dinâmicas de poder e mistério que rondam a escola.
Bem, pelo que escutei por aí, esse é um livro bem ame ou odeie. Ele é lento, é weird, com muito body horror, experimentação de prosa e introspecção de personagem, contando as coisas fora de ordem e nem sempre com respostas muito exatas. Às vezes, apenas não é o seu tipo de livro.
Mas felizmente eu sou esse tipo de leitora! Eu marquei “ciente e desejo continuar” em cada pedacinho do parágrafo acima, porque é justo o tipo de narrativa que mais costuma me prender!
E Meninas Selvagens… bem, eu ainda não sei se gostei ou não. Certo, ele tem trechos lindos de prosa e subtexto como “isso sempre já aconteceu” e “gosto até mesmo do fato de ela nem sempre gostar de mim”, e certo, ele realmente é um livro vira-página (fazia tempo que eu não terminava um livro tão depressa). Certo, ele faz escolhas muito interessantes de construção de personagem e traz relacionamentos complexos, inclusive românticos. Mas ao mesmo tempo… 20% de Meninas Selvagens e ainda não sei se tô curtindo ou não porque tem muita coisa massa mas também tem eu a cada 3 páginas "mas como pode existir urso, lobo, lince e raposa numa ilha de 8km de extensão, minha gente"
Talvez o problema seja eu (aquelas, kkk), porque o livro aborda algumas das minhas maiores nerdices e, tal qual o físico teórico que se revira na cadeira lendo histórias de viagem no tempo, a minha descrença simplesmente custe a ir embora.
Fiquei com a sensação de que a autora quis aplicar o weird em duas frentes entrelaçadas: na introspecção das personagens, suas reações e pensamentos (e a prosa entra nessa também), e no ecossistema da ilha, sempre esquisito, repulsivo e hostil, refletindo o estado das protagonistas e ativando todo e qualquer instinto de sobrevivência até conceitos como ética e lealdade não importarem mais. PORÉM, essa segunda parte, ela soa… desconjuntada. Genérica. Como se, em vez do ecossistema cuidadosamente equilibrado de uma ilha, estivéssemos lendo o que alguém com não muita pesquisa imagina que seja o ecossistema de uma ilha e como sobreviver a ele sem querer se debruçar muito no assunto. E assim, longe de mim deixar de gostar de livro por detalhes bobos, e esteja à vontade para cagar com algumas regras da natureza ou para não saber como fazer comida render em um internato (já devo ter escrito cada merda, meu deus), mas é que nesse livro isso é uma coisa IMPORTANTE. É um dos pilares, um dos temas. A ficção não precisa ser atrelada à realidade, mas é importante que ela soe realista. Que transmita uma sensação do plausível naquele mundo. Ainda mais quando, ali pela metade do livro, a história abandona as metáforas e pende para uma investigação de mistério, e aí esses aspectos biológicos acabam se tornando o cerne da questão.
Mas não estou focando em um ponto do livro do qual desgostei à toa. Meninas Selvagens me colocou muito para pensar nesses frágeis equilíbrios de ecossistema, e em como tudo pode mudar depressa diante da menor alteração.
Deixa eu te contar as coisas nas quais fiquei matutando durante a leitura:
Superpredadores
Os chamados superpredadores ou predadores apex são aqueles animais que ocupam o topo de uma cadeia alimentar. E como você bem sabe, cadeia alimentar é esquema de pirâmide: a “biomassa” é muito maior na base do que no topo. Para um superpredador existir, é preciso um número bem grande de presas disponíveis e um número ainda maior de alimento para que essas presas continuem existindo e se multiplicando mesmo com as frequentes baixas.
É por isso que, geralmente, superpredadores não só são territorialistas como ocupam áreas imensas. Para se ter uma ideia, a chamada “área de vida” de um puma tem, no ruim do ruim, uns 30 km². A cidade de São Paulo tem 1.500 km², o que equivale ao território de 50 pumas. Essa é uma conta bem por alto, ainda mais se considerarmos que o clima e o bioma associado também afetam a equação: biomas com maior escassez de presas implicam em territórios maiores (segundo a Wikipedia, a área de vida dos pumas costuma ser até três vezes maior na América do Norte do que no Pantanal). Também é por isso que, quando lemos sobre dragões, eles costumam morar sozinhos, ocupar uma montanha inteira e dormir por dez anos. Imagina o tamanho da base de uma pirâmide capaz de sustentar dragões! O bicho palita os dentes com um boi inteiro!
Também por esse motivo, predadores apex não costumam ocorrer em abundância em ilhas, ainda mais ilhas pequenas e remotas perdidas no oceano, sem acesso fácil ao continente. Muitos deles de uma vez? Ainda mais improvável. Só Jurassic Park conseguiu esse feito, e note que mesmo assim só havia UM tiranossauro no primeiro filme.
Uma ilha pequena com ursos, linces, lobos, raposas e coiotes? Mais fácil eles detonarem a ilha inteira até precisarem predar uns aos outros antes de morrerem todos de fome.
Quem sai ganhando?
Quando ocorre um desequilíbrio ambiental, isso não significa que todo mundo vai passar aperto. Na verdade, é bem provável que alguém esteja ganhando. Desequilíbrios naturais ocorrem de tempos em tempos, de forma orgânica e lenta (e não com a interferência do homem, essa sim catastrófica), mudando e adaptando a fauna e flora de cada lugar. Pode ser uma mudança climática, a erupção de um vulcão, o surgimento de uma doença, não importa. Qualquer alteração em um elo da cadeia e as coisas VÃO mudar. E alguém vai se dar bem. Elimine todos os sapos e você terá uma praga de gafanhotos. Elimine aquela única espécie de abelha capaz de polinizar flores de formato X e diga adeus às baunilhas, mas olá para outras espécies pendentes. Se você libera um cantinho numa cadeia alimentar, alguém vai se aproveitar disso. Existe um minidocumentário bem famoso, sobre a reintrodução de lobos selvagens no Parque de Yellowstone e as consequências disso tudo.
Às vezes, os animais também se adaptam a novos nichos. Indivíduos de mesma espécie, mas separados geograficamente, podem ter hábitos completamente distintos. Suas dietas podem mudar, assim como o modo de capturar a comida. Talvez alguém aprenda a caçar em bandos, talvez alguém aprenda a seguir determinada espécie de esquilo para roubar as sementes estocadas nas árvores.
Então seu livro lida com algum tipo de doença que afeta o delicado ecossistema de uma ilha? Seus predadores endoidaram? As plantas estão crescendo mais rápido e com mais vigor? Quem se beneficia disso tudo? Qual a primeira superpopulação a aparecer? Qual a primeira a ser extinta?
Ilhas são pequenos laboratórios de coisas estranhas
Madagascar. Galápagos. Nova Zelândia. Faz você pensar nuns bichos esquisitos, certo?
Ilhas são como terrários. Menores e mais isoladas, elas permitem que a vida cresça e se desenvolva com pouca interferência, criando um monte de “hiperespecialistas”. Como as cobras peritas em capturar passarinhos da Ilha da Queimada Grande, que adaptaram até mesmo a composição de seu veneno para uma maior letalidade entre as aves.
É comum que ilhas tenham espécies endêmicas, plantas, animais e fungos que só existem ali, que sobrevivem apenas naquelas condições, com relacionamentos intrincados.
Em Meninas Selvagens, temos como espécies endêmicas os caranguejos e as íris de Raxter, mas, dado que o ecossistema da ilha é bastante genérico de uma floresta de clima temperado, fica meio difícil entender por que eles sequer se deram ao trabalho de mudar, ou como essas vantagens adaptativas se integram ao cotidiano da ilha. Mas aí sou eu procurando cabelo em sapo (podia ter, hein).
O que a presença humana fez?
Agora que já conversamos tudo isso, só nos resta dizer que o homem é o maior predador apex com o maior potencial de desestabilizar um ecossistema e sair ganhando. Uhuuu. Agora imagina o que a gente faz em uma ilha.
Desmatamos áreas para construir casas, trazemos animais domésticos e doenças, cultivamos nossos próprios vegetais e selecionamos aqueles que melhor nos servem. Em resumo, nós não provocamos o desastre, nós somos um desastre.
E nem é preciso realmente uma civilização para isso acontecer. Extinções podem ser obra de uma pessoa só, e os hipopótamos importados por Pablo Escobar continuam uma verdadeira dor de cabeça ambiental. Na contramão das espécies endêmicas, temos as espécies exóticas (introduzidas proposital ou acidentalmente em lugares nos quais não existiam, mas que ou acabam se integrando ou dependendo dos humanos para prosperar) e as espécies invasoras (parecidas com as exóticas, mas que não se integram ao ecossistema, gerando desequilíbrio, superpopulação e caos). Um dos meus passarinhos favoritos, o bico-de-lacre, é uma espécie exótica trazida ao Brasil pelos navios negreiros.
Nos últimos meses, acompanhei os esforços do Jeff VanderMeer (autor de Aniquilação, livro weird que amo e nerd de bichinho que nem eu) para limpar seu imenso quintal de plantas invasoras e reestabelecer a biodiversidade natural do lugar, que agora conta com visitas diárias de guaxinins, tatus e cágados.
Aliás, mesmo nós, meros mortais do dia a dia, causamos impacto: boa parte das plantas ornamentais que colocamos em nossas casas são espécies estrangeiras e híbridas. Basta um descuido e uma sementinha rola para lá, um pólen cai acolá, e já estamos provocando mudanças. E esse movimento nem é coisa recente: há teorias que ligam homens pré-históricos ao aparecimento de cervos em determinadas ilhas. Agora imagina o que pode acontecer numa ilhota com um colégio inteiro e uma base militar logo ali do lado… Não seria legal se o urso de Raxter fosse o pet abandonado e fora de controle de uma ex-diretora excêntrica?
Bem, acho que, às vezes, eu falo demais. Esse negócio de fazer ficção é uma loucura, né? Ainda bem que nem sei escrever. Lembrando que você pode mandar tudo às favas se quiser aplicar conceitos amplos de magia, nonsense ou, sei lá, influência alienígena. Tudo vale, desde que fique coerente na sua proposta. A regra é praticar com as regras pra poder ignorar as regras quando for conveniente. Observações ecológicas ficam por conta da nerd amadora de bichinho que vos fala. Você, por outro lado, devia me contar das suas nerdices.