Às vezes eu falo de coisas que li na escola
Quando digo onde estudei desde o maternal até o terceiro ano do científico (isso ainda existe?), meus amigos de Recife costumam me olhar dos pés à cabeça com aquela expressão horrorizada de “mas como foi que isso aconteceu com você???”.
Talvez essa seja a característica mais fora do personagem que eu tenho (e não o gostar de futebol, como eu pensava antes). Estudei todo o ensino básico no colégio particular mais elitista, conservador e religioso da cidade, possivelmente do estado. Aprendi a cantar com a mão no peito todos os hinos que existem, incluindo o hino da bandeira. Aprendi inúmeras orações e protocolos católicos, aprendi o nome dos santos. Fiquei numa sala diferente das minhas melhores amigas porque o colégio achava saudável separar alunos por rendimento escolar. E sobrevivi para contar a história.
Antes que você pergunte, não, os meus pais não me odeiam. O ensino lá era realmente muito bom (e alguns dos professores são pessoas nas quais me inspiro até hoje). Além disso, adolescente é um bicho de hábitos… Eu tinha meu grupinho de amigos, e não importava quanto bullying eu sofresse: aquele era o meu bullying, sabe, e eu abominava a ideia de trocá-lo por um novo, então preferia continuar na mesma escola. É isso aí: valorize os seus traumas locais.
Mas fato é que meu colégio sempre comemorava o 7 de setembro. Tenho uma vaga memória de uma excursão para alguma base militar, onde recebemos palestras sobre Exército, Marinha e Aeronáutica (sim, eu também já fiz “turismo” dentro de um tanque). Tenho fotos com chapeuzinho de soldado e cantava “eu te amo, meu Brasil, eu te amo, meu coração é verde, amarelo, branco e azul-anil” enquanto marchava com as outras crianças pela quadra.
O horror, o horror.
No último 7 de setembro, fiquei relembrando essas coisas, questionando com a minha irmã ao telefone como é que a gente virou… bem, a gente depois de quinze anos intensivos de ensino básico.
Cheguei em algumas hipóteses.
Primeiro, tive uma influência grande da minha família. Entre mãe artista fã de Paulo Freire, pai politizado frequentador de manifestações, CD do Chico Buarque sempre tocando e uma irmã com uma curiosidade e uma sede inesgotável por conhecimento, eu até que me saí bem (isso e ter crescido na era de ouro do petismo em um dos estados mais contemplados por suas políticas).
Mas, no fundo, sendo bem sincera, eu fui politizada pelos livros.
Não, não vou fazer aqui um relato meloso sobre como a literatura moldou meu caráter, ampliou meus horizontes ou fez de mim uma pessoa mais empática e sensível às mazelas do mundo (embora isso tudo seja verdade).
Não. Eu vou contar outra coisa. Eu vou contar sobre a hipótese de que havia uma agente infiltrada da Ursal atuando no meu colégio. *tam dam*
Explico:
Conversando com a minha irmã, começamos a rememorar os paradidáticos que havíamos lido, lembrando como vários deles nos marcaram para sempre e nos passaram valores muitas vezes associados ao tal “fantasma do comunismo”. E não estou falando dos clássicos, de Jorge Amado, Machado de Assis nem nada disso. Eram paradidáticos atuais mesmo, escritos para crianças e pré-adolescentes.
E eu não faço a menor ideia de como um colégio como o meu permitiu a escolha de alguns títulos em específico. Digo, é claro que histórias com temas universais como amor, fraternidade, igualdade e justiça acabariam passando (eu acho que ainda não acusaram o amor de ser esquerdista, mas posso estar enganada). Mas esses eram livros tão, mas tão na cara que eu chego a me questionar: Eles sabiam, né? Não é possível que alguém olhou essa capa com esse título e NÃO SACOU…
Única solução possível: agente da Ursal. Gosto de imaginar essa senhorinha mansa e acima de qualquer suspeita, usando terninho, meias de compressão e óculos de aro de tartaruga pendurado numa correntinha, escolhendo a dedo os paradidáticos do ano seguinte e convencendo os diretores a acatá-los por meio de alguma argumentação mequetrefe. À noite, exausta, ela chegaria em seu modesto apartamento e prepararia um café na companhia de seus dois gatos, Foice e Martelo. Uma heroína sem rosto da minha infância.
Brincadeiras à parte, essa volta toda na newsletter foi só para falar de dois livros que eu queria muito que todo mundo conhecesse (surpresa, isso é um publi — mentira).
O primeiro deles eu li por volta dos dez, onze anos. Chama-se “Trapezunga e Terreirão — uma fábula da abolição”, um livro bonito, cheio de ilustrações. O autor, Chico Alencar (que eu só fui descobrir tipo agora que é ex-deputado federal e vereador do RJ pelo PSOL), explica a obra como uma alegoria, criada por ele no momento em que percebeu que a Princesa Isabel não era tão boazinha assim. Trapezunga e Terreirão fala sobretudo como as conquistas sociais (nesse caso específico, a abolição) nunca serão fruto da bondade de quem está no poder, mas sim da pressão popular, dos movimentos coletivos e do diálogo, ok, mas também do confronto.
A história fala sobre a revolução conduzida por um grupo de galinhas, patos e marrecos presos em uma fazenda (muito antes de A Fuga das Galinhas ser lançado). Mas acho que o diferencial de Trapezunga e Terreirão não é tanto a premissa, que já era bem boa, mas principalmente a abordagem. As ilustrações do livro não poupavam detalhes. A fazenda era opressiva, as personagens pareciam exaustas. A prosa era dolorida, cheia de detalhes agridoces que nos faziam amar todas aquelas aves e que depois despedaçavam nosso coração. Havia perdas, havia sangue, havia luta. Muitos dos nomes e espécies usadas faziam referência direta ao período da escravidão no Brasil (a galinha-d'angola, por exemplo). A tipografia do livro mudava em momentos especiais do enredo, como nas palavras de ordem gritadas pelas galinhas, nos pedidos de socorro. Um livro que sempre mexia comigo a cada releitura. Tinha romance, drama, humor, música. Mais recentemente, encontrei esse livro na casa da minha irmã e fiquei admirada em constatar quão poucas páginas ele tinha. Nas minhas memórias de infância, ele era gigante. Ele era um mundo inteiro.
O segundo livro tem uma edição mais recente. Chama-se “As Batalhas do Castelo”, de Domingos Pellegrini. É um volume mais encorpado, lá pelas cento e tantas páginas, visando um público um tiquinho mais velho. Devo ter lido com uns catorze anos, por aí.
Em vez de ficar rasgando seda pro livro, vou fazer um resumo da história, que aí fica mais fácil de você entender a treta (sujeito a informações erradas por motivos de memória ruim):
Um rei moribundo e que só tem filho interesseiro resolve deixar a herança para o bobo da corte, seu único amigo. Mas o pessoal da realeza passa a perna no pobre do rapaz. Chamam-no de Bobuque, o bobo que também é duque, e entregam para ele o pior castelo de que se tem notícia, uma fortaleza abandonada caindo aos pedaços numa terra árida e sem riquezas. Como súditos, Bobuque recebe os criminosos da cadeia, as prostitutas, os órfãos, os velhos… todos os marginalizados do reino (além de um poeta — eu amo o senso de realidade desse autor, haha). Mas essa é a história de como Bobuque cria uma aldeia utópica e igualitária, usando a criatividade e o senso de comunidade para fazer o castelo prosperar. Além dos dilemas pessoais dos moradores do castelo (e eu juro que você vai amar todos eles, vai chorar bastante e vai querer guardá-los num potinho), uma das mensagens da história é de que toda e qualquer pessoa tem coisas a contribuir para a sociedade, tem conhecimento e valor. O enredo te conduz pela rotina do castelo e pelos problemas enfrentados por Bobuque e seus “súditos”, incluindo, é claro, uma realeza que quer tomar tudo de volta depois que as coisas começam a dar certo. Ah, e tem uma pandemia acontecendo também.
E eu não sei se você já viu a capa da edição antiga de As Batalhas do Castelo, mas digamos que ela… não é sutil. Na ilustração, em fundo preto e pestilento, vemos três braços erguidos. O primeiro segura uma foice, o segundo uma espada e o terceiro um crucifixo. COMO. QUE. O. MEU. COLÉGIO. DEIXOU.
Imagino que esse tenha dado trabalho pra dona Mariluce, a agente da Ursal. Talvez ela tenha usado a cartada de que o Domingos Pellegrini já foi premiado no Jabuti. Deixando as gracinhas de lado, é interessante observar como essa neura em perseguir a tal da “doutrinação literária” parece ter ressurgido apenas em tempos recentes. Fato é que a última edição desse livro recebeu uma capa nova bem mais comportada…
Enfim, não sei, não tenho conclusão para esse texto. Queria falar sobre esses dois livros e pronto, sobre o quanto ainda carrego essas histórias comigo. Talvez devêssemos olhar com mais atenção para os paradidáticos, para a literatura infantojuvenil de modo geral. Valorizar histórias capazes de dizer tanto em tão poucas linhas, usando palavras tão mais simples do que as que eu depositei aqui.
E você? Já leu algum desses livros? Tem algum paradidático responsável por moldar um pedacinho de quem você é hoje? Me conta, vai.