Antes de começar, vamos nos livrar da parte chata, os avisos: Para quem estiver zanzando pela Bienal do Rio de Janeiro, vou estar por lá entre os dias 6 e 10 de setembro. Tenho algumas sessões de autógrafos nos estandes da Autêntica e da Companhia das Letras e adoraria receber visitas!
Era uma casa muito engraçada
Estou gestando essa edição da newsletter desde que me bateu a doida e fui procurar a antiga casa da minha avó materna no Street View do Google. A construção, que não existe mais, foi preservada nas imagens de uma empresa que provavelmente não se preocupou muito em atualizar os dados da longínqua cidade de Lagoa dos Gatos, interior de Pernambuco.
Não tenho muita certeza de como ela surgiu. Acho que foi meu avô quem construiu, ou talvez ele tenha comprado uma casa menor e feito só a ampliação pra parte de trás. Sei que assim que terminar de ler isso, minha mãe vai me mandar uma mensagem desaforada de “Meu Deus, Fernanda, como você não sabe!!”, sendo que ninguém nunca me contou direito. Minha família tem disso, ela conta as histórias nas entrelinhas. A pessoa precisa ficar esperta.
Mas era de fato uma casa engraçada. Um terraço grande e retangular ocupando toda a parte da frente, duas janelas e uma daquelas portas que abrem em duas partes (a casa era confundida com um bar dia sim dia não pelos bebuns que subiam a ladeira no fim da noite, para desespero da minha avó carola, que precisava explicar que aquilo ali, meu senhor, era uma residência de família). Nas laterais, janelinhas enfileiradas indicando cada quarto. A cozinha ao fundo. E também o terraço dos fundos, que seria uma cópia muito mais bacana do primeiro caso a obra tivesse sido concluída e ele não tivesse virado um depósito infestado de escorpiões para todo tipo de quinquilharia.
Não tinha teto, não tinha nada
Desde que me conheço por gente, a casa já era velha. Ninguém morava mais ali, estávamos todos em Recife já muito antes de eu nascer, mas a casa permanecia como uma espécie de estação esquisita de veraneio onde minha avó e os filhos se reuniam nas férias para fazer farra e passar perrengue.
Porque degustar um bom perrengue, veja bem, é uma arte. Acredito mesmo que tenha desenvolvido meu caráter e forjado coisas para toda a vida, de traumas a afetos.
Na casa, não havia forro no telhado, e ninguém se preocupou em subir as paredes até o fim, de modo que, à noite, se você precisasse de, sei lá, um repelente para insetos, bastava pedir aos ocupantes do quarto ao lado, e um spray sairia voando por cima da parede até você. Muito legal para crianças brincando de trocar coisas e conversar antes de dormir, péssimo para quando seu tio ronca, sua vó precisa rezar todas as novenas já produzidas pela cristandade e no quarto ao lado há um ventilador velho tão barulhento que, quando ele gira, o burro no terreno do vizinho responde.
Por falar em terreno, o da casa é uma ladeira. Vai descendo a encosta conforme você caminha para os fundos, longe da rua. Quem construiu a casa não se importou em nivelar as coisas, de modo que a casa apenas desce e as paredes sobem para compensar o telhado. Ou seja: um degrau subindo do terraço para a sala, três degraus descendo da sala para o corredor, o corredor inclinado, dois degraus descendo para a cozinha, dois degraus descendo para o banheiro. Os quartos, porém, foram nivelados, o que criou a maravilha arquitetônica de um corredor com portas em alturas diferentes. No primeiro quarto, um leve batente. No último quarto, um degrau que vai até o meu joelho para entrar.
Note que falei em apenas um banheiro. Cinco quartos, um banheiro. Que acharam por bem grudar na cozinha. E colocar a pia do lado de fora. Mesmo com o lado de dentro sendo gigante e tendo como única mobília um banquinho de ferro. (Imagino, porém, que eu deva agradecer pelo adendo do banheiro, porque, antes de eu nascer, as necessidades eram feitas em uma casinha do lado de fora.) O fato tornava muito normal que a gente jantasse ao mesmo tempo em que formava a fila do banho, ou que tomasse café conversando enquanto alguém escovava os dentes — e estou sendo generosa nos exemplos para preservar a sensibilidade alheia.
Ninguém podia entrar nela, não
É engraçado como, na minha cabeça, há uma distinção muito clara entre o que era a cidade e o que era a casa. Para chegar na cidade, você precisava descer a ladeira e contornar o açude, chegando nas partes com calçamento. Já lá em cima, depois da ladeira, era a casa. Nossa rua contava com quatro ou cinco casinhas enfileiradas, vivendo uma existência à parte. A cidade ficava embaixo. Às vezes, a chuva vinha com força e deixava todo mundo preso por conta da ladeira que enlameava, que não deixava o carro passar sem patinar de um lado para o outro. Meu Deus do céu, seu pai precisa trabalhar amanhã. Vamos tentar passar. As crianças levantam as mãos e riem, o carro desliza. Volta, volta, a gente tenta amanhã cedo.
Se você continuasse subindo a ladeira, chegaria a um campinho de futebol bem no topo do morro. Absolutamente nada além do campinho, e depois a estradinha que seguia serpenteando pelos recortes da serra.
Como campinho, ele era inútil, já que o primeiro a chutar errado também acabava com o jogo — a bola rolaria penhasco abaixo. Mas ele era excelente para fazer chamadas telefônicas (na época, o único lugar com sinal na cidade inteira) e para servir de pista de autoescola (embora eu admire a confiança do meu pai de que não iríamos tacar o carro penhasco abaixo). Eu dirigia com dois travesseiros embaixo da bunda para poder enxergar acima do painel, dando voltas e mais voltas em segunda marcha, de uma trave até a outra.
Porque na casa não tinha chão
O chão da casa era vermelho. Não sei se era de cimento, acho que sim, mas era vermelho, liso e gelado, bom de pisar descalça. Vivia esbranquiçado da poeira da estrada, do pó das paredes.
Uma vez minha irmã matou uma barata na parede com um tiro. A espingarda de chumbinho, herança do avô paterno, era uma diversão para a primaiada que apostava quem tinha a melhor mira em latinhas de alumínio espalhadas em cima dos tocos das cercas (ninguém atirava em bicho lá em casa, ninguém queria). Aí um dia apareceu uma barata cascuda, dessas de coqueiro, enorme, voando. Ninguém conseguia matar. Ela pousada lá em cima na parede, todo mundo querendo dormir, mas ninguém querendo dormir com a barata. Minha irmã pegou a espingarda e PAM, um tiro só. Eu fico me perguntando que tipo de casa, que tipo de lugar, torna o ato de pegar uma arma e atirar na parede pra matar uma barata uma solução lógica.
Minha irmã sempre foi a melhor na mira.
Ninguém podia dormir na rede
A casa não tinha para-raio. Quando chovia forte, minha avó rezava e mandava a gente esconder as tesouras e os espelhos.
À noite, se o tempo estivesse firme, a casa era inundada pelos insetos daquela mistura de mata atlântica com caatinga, de modo que ficar dentro da casa exigia muita paciência. A gente preferia o terraço, na frente da fogueira. Lá dentro, era certo de levar um rola-bosta na testa, de uma esperança pousar no seu ombro, de correr de susto por causa de uma mariposa maior que a minha cara. À noite, a casa era só para tomar banho, sair, curtir a vida do lado de fora, jogar conversa e aí voltar para dormir.
Os corajosos (ou bêbados) dormiam como estavam. As crianças (e principalmente eu) recorriam a mosquiteiros engenhosamente improvisados para fugir dos insetos. Até os meus nove anos, dormi em um berço no quarto que ficava para os meus pais, porque era a única coisa 100% à prova de insetos daquela casa. Vai ver isso explique porque até hoje amo dormir encolhida. Depois, quando não cabia mais no berço, fui para o quarto da minha avó, que dividia com a minha irmã, e meu pai ensacava o mosquiteiro por baixo do colchão. Eu dormia bem no meio da cama, que era pra não encostar no mosquiteiro. Ficava vendo os bichos andando pelo tecido enquanto o sono não vinha, encantada em poder olhar tudo de perto na proteção da minha redoma. Em situações muito extremas, como quando os adultos varavam a madrugada no terreno de uma conhecida, eu dormia no banco de trás do carro.
Depois, tudo preto. Numa contradição, a casa provia as melhores noites de sono que alguém poderia ter. Acordávamos com os passarinhos cantando no caibro, pequenos raios de sol que se infiltravam pelas frestas das telhas, partículas de poeira voando, o som de alguém varrendo, de alguém saindo para comprar pão. Ao levantar, dar uma olhada nos tênis para o caso de aranhas.
Eu amava a casa durante as manhãs. Eu amava o terraço durante a noite.
Eu odiava a casa depois do almoço. À tarde, os adultos iam dormir. Descansar para poder varar a madrugada, fugir do mormaço, da poeira. Os primos mais velhos acompanhavam ou saíam para a cidade. E eu, caçula da caçula, era a única acordada. Era como estar parada no tempo. Horas de silêncio, contemplação e aventuras solitárias. Eu recolhia gravetos, colecionava pedras, recolhia insetos em potes de vidro. Tentava derrubar mangas com meu estilingue. Mas sempre me sentia um tanto melancólica.
Uma vez, chegamos na casa vindos de Recife logo depois do almoço. Descobrimos ter atropelado um passarinho, que ficou grudado no para-choque do carro. Meu pai o pegou e deixou no degrau da entrada para que eu pudesse ver. Os adultos foram dormir. Lembro de ficar sozinha, sentada nos degraus, contemplando aquele corpinho tão pequeno, chorando pelo passarinho que passara pela vida sem deixar rastro, sem deixar saudade a não ser a minha, que nem o conheci. Em silêncio, completo silêncio, eu, o bicho morto e o chão vermelho.
Enterrei ele por trás da casa.
Porque na casa não tinha parede
Lagoa dos Gatos, ali na nossa rua acima da ladeira, era tão pacato que eu realmente vivia solta, desde que não me afastasse muito da casa. Aquilo ali era um reino, cheio de lugares a visitar, coisas secretas que só eu sabia. Procurar sapos no cano que jogava a água da cozinha para o quintal, dar palha de milho para o boi do vizinho, sentir a língua áspera enrolar na minha mão. Procurar brotos de Mimosa pudica e passar o dedo para ver a planta se encolhendo. Procurar as cabras da outra vizinha, Maria, ver se tinham dado filhotinhos. Tentar pegar os pintinhos no colo. Correr para casa quando as outras crianças apareciam, porque éramos todos um tanto alienígenas uns dos outros, e os meninos se sentiam na obrigação de cuidar de mim porque as mães mandavam, porque eu era da cidade, porque eu chorava quando me ralava em vez de só passar terra no joelho. E eu odiava essa sensação. Ficava constrangida.
Ninguém podia fazer pipi
O banheiro da casa é um capítulo à parte nas anedotas da família. Além da já comentada excelente localização higiênica junto à cozinha, a coisa só ficava ainda melhor por dentro. Assim que chegávamos para passar as férias, um adulto corajoso era escalado para fazer o primeiro acionamento da descarga, porque, com certeza, teríamos umas quatro ou cinco rãs morando na privada. Eu fazia xixi rezando toda vez, e não é modo de falar. Ter que sair correndo com uma rã colada na bunda era sim um medo real da minha infância.
O chuveiro, uma maravilha da era moderna com a instalação desencapada pendendo do telhado, não inspirava confiança. Melhor tomar banho de chinelo. Aliás, melhor acionar a água quente, entrar de chinelo e tomar todo o cuidado do mundo para não encostar no registro de metal sob risco de morte. Pensando em retrospecto na casa, é um milagre o número tão reduzido de acidentes em um lugar que já chegou a abrigar uma geração de dez netos.
Fora isso, eu tomava banho de olhos bem abertos, rodando feito pião no mesmo lugar, que era para ficar atenta caso algum bicho resolvesse invadir o box do banheiro. Eu não me consideraria uma criança assim tão fresca, mas com certeza a casa fez de mim uma criança precavida. Isso e o dia em que acharam uma lagartixa na geladeira.
Porque penico não tinha ali
A mobília da casa era uma coisa muito engraçada. Antiga, uma mistura de peças vindas de várias outras casas e mudanças, toda desconjuntada. Uma fruteira de plástico na mesa da cozinha. Um ferro de passar (de ferro) sobre a passadeira do corredor. Cadeiras austeras, de couro e tachinhas. As paredes cheias de imagens de Jesus Cristo e Nossa Senhora, um terço gigante pendurado na sala. Espanadores e vassouras, os melhores amigos da minha avó (depois de Jesus).
Uma televisão velha que alguém trouxe para a sala. Às vezes, se estivesse passando algo muito legal (como um filme inédito na Tela Quente!), eu me reunia com minha irmã e minha prima, as três sentadas no sofá dividindo um cobertor e afastando os insetos da cara. De resto, era só minha avó assistindo às novelas do SBT. Carrossel, Maria do Bairro, Marimar… ela via todas.
Uma coisa da qual também me lembro bem é do cheiro da casa. Logo que a gente chegava, quando ainda estava tudo quieto desde muito tempo. Um cheiro gelado, fundo, um misto de madeira, pó e coisa guardada. Eu amava esse cheiro.
Mas era feita com muito esmero
Quando conto dos perrengues que a gente passava na casa, a maioria das pessoas ri, abismada, e me pergunta por que diabos gostávamos tanto daquele lugar.
É que a casa tinha uma magia meio louca, sabe? Ela te conquistava pelo absurdo.
Sempre que íamos para lá (às vezes à noite, com meu pai cantando Negro Gato enquanto dirigia), eu arrumava minha mochila como se estivesse indo para uma expedição à Amazônia. Potinhos, corda, lanterna, binóculo, canivete, lápis e caderno. Na véspera da viagem, eu fazia checklists com a minha irmã para ter certeza de que não tínhamos esquecido nada.
De manhãzinha, bem cedinho com o galo cantando, meu pai levantava e nos levava para caminhar. E, por caminhar, entenda como andar a esmo explorando a serra, pulando cerca, subindo em pedra, comendo fruta, olhando os bichos. Voltávamos perto do meio-dia, com a língua de fora, mas meu Deus como eu amava aquilo. Eu fui muito feliz naquela casa. Mesmo da vez em que levamos carreira de um boi. Talvez principalmente naquele dia.
Minhas melhores festas de São João foram ali. O Carnaval eu achava meio chato, mas era sempre engraçado. Quando eu era bem pequenininha, minha tia (que faleceu pouco depois e deixou saudades) me colocou em cima da mesa e me mostrou como ela tocava acordeon. Me ensinou que tomar água gelada logo depois de escovar os dentes é gostoso. Essas são as duas lembranças mais nítidas que tenho dela.
Minha outra tia comprava estalinhos e aqueles fogos tipo chuveirinho para mim. Eu amava as fogueiras, as faíscas, riscar o chão de terra com carvão, dormir cheirando a fumaça. O som do triângulo e da zabumba.
Amava as histórias, os causos. Amava ir até a fazenda de um tio-avô meio insalubre, mas que tinha piscina, galinheiro e uma gruta (!!!) na propriedade. Diziam que, décadas antes, era comum encontrar lobos-guarás por ali. Passei anos escaneando o horizonte daquela fazenda. Nunca vi nenhum lobo-guará.
Eu amava ir até a farmácia, porque era o único lugar da cidade onde vendia sorvete. Amava a feira, amava aquela curva do caminho alternativo onde só havia cajueiros, amava ver os cavalos passando e os anus no mato. Amava os vaga-lumes à noite e as histórias de extraterrestre. Amava todas as placas erradas.
Amei aquela casa e tudo o que ela representava com uma lealdade feroz, com orgulho, com identidade. Tanto, mas tanto, que não enxerguei muita coisa.
Na Rua dos Bobos, número zero
Minha família está muito longe de ser perfeita. Percebo agora que foi na casa que conheci o melhor e o pior de todos eles.
Frequentamos a casa até mais ou menos os meus quinze anos, quando então a construção ficou realmente instável, na definição mais elogiosa, e os perrengues se tornaram insustentáveis. Acho que a casa ruiu tal qual a minha família. Desabou, descobrindo que não adianta pintar paredes quando a fundação está podre. Foi tomada pelo mato. Depois, venderam o terreno. Alguns parentes faleceram, outros se afastaram ou foram afastados.
A casa ocupa um espaço agridoce no coração da Fernanda de hoje. No mínimo, parece outra vida, outra história. Queria revisitá-la e, ao mesmo tempo, nunca mais pôr os pés lá. Tenho medo de olhar as coisas com essas minhas lentes de adulta. Tenho medo de não encontrar mais a magia. Por enquanto, quando mencionamos a casa entre nós — eu, minha irmã e minha prima —, é com o olhar cúmplice de quem sabe estar falando de algo que só compreende quem viveu na prática, quem sentiu na pele. Quem se machucou nesse amor. Quem guardou as boas lembranças.
Mas era uma casa engraçada. Era mesmo.
Não é de hoje que amo sua escrita, mas esse texto tem uma coisa profunda e cheia de camadas que me deixou muito pensativo sobre meus próprios lugares da infância. E a gaitada que eu dei quando sua irmã acertou a barata com um tiro 🗣️🗣️🗣️
Chocada com a mira da rir irmã! Rsrs
Adorei seu texto. A minha família tinha uma casa semelhante no interior do RN. Essas casinhas tem história. O enredo pode não ser dos melhores, é verdade, mas sempre tem suspense. Rsrs
Obrigada pelo texto!