Às vezes eu falo de rio e de mar
Hoje está valendo a velha máxima: o aniversário é meu, mas quem ganha o presente é você.
Resolvi te mandar um conto. E um de que gosto bastante.
"No mar, ele sempre ganha” foi originalmente publicado na Pretérita, uma revista independente com foco em ficção histórica. Ou seja, nada de elemento fantástico por aqui. Escrevi o texto à convite, para a edição cujo tema era corpos d'água. Foi um desafio, mas me diverti muito com o processo e com a história que veio ao mundo.
A Pretérita, infelizmente, foi descontinuada. Era um projeto lindo tocado por gente querida, mas que, como acontece com frequência no meio indie, estava sujeito aos percalços do mundo.
Como eu acharia uma pena ver esse conto sumir no limbo, estou republicando aqui, bem no dia do meu aniversário.
Ah, e uma última coisa antes do abrir das cortinas: gostaria de me dar um presente ou de remunerar esta edição da news? Faça uma doação para a ong Lar dos Pancinhas (pix lardospancinhas@gmail.com), que cuida de jumentos abandonados e vítimas de maus tratos no Ceará, e aproveite para conhecer a iniciativa. Eu ficaria imensamente grata.
Agora vamo simbora, pau na máquina!
No mar, ele sempre ganha
Fernanda Castro
“Vence a regata que te dou um beijo.”
Enquanto lixava o barco, as palavras de Cathy não saíam de sua cabeça.
Álvaro de Alcântara podia ser apenas um rapazote de dezenove anos, mas sua experiência no remo era tão extensa quanto a várzea de argila escura e massapê do Capibaribe (e bem maior do que o bigodinho ralo que ele começara a cultivar no último ano).
Filho do famoso “Doutor Alcântara”, dono de boa parte dos armazéns que escoavam o ouro branco dos engenhos da região, Alvinho crescera entre as docas do Porto do Recife, andando de um lado para o outro como um príncipe, entreouvindo a conversa dos marinheiros e apostando corrida com os meninos caboclos de pé descalço que disputavam bicos aqui e ali para carregar caixotes na foz do rio. E, sempre que a oportunidade se apresentava, quando alguém lhe cedia um baleeiro ou um bote, quando as aulas do prestigiado colégio permitiam, Alvinho remava.
Comparecera à sua primeira regata no ano de 1885, ainda mal saído dos cueiros e agarrado à saia da babá. Doutor Alcântara era um grande entusiasta do esporte, que aprendera a amar no convívio com os empresários ingleses que conhecera na Europa e que agora visitavam a República em busca de negócios. Aquela fora a primeira regata não só para Alvinho, mas também para o Recife. Por três mil réis a cadeira ou mil réis a arquibancada, as famílias de alta estirpe assistiram aos nove páreos promovidos pelo Club de Regatas Pernambucano. Alvinho ainda lembrava do esplendor das embarcações vencendo o rio — Zephiro, Pyro, Meduza, Melpomene e tantas outras, cortando as águas sob a ponte que brilhava à luz do sol —, seus competidores de braços fortes e bem vincados, as camisas sem mangas coladas no corpo devido aos respingos e ao suor. Naquele dia, Doutor Alcântara incutira para sempre no filho, fosse através do esporte ou do ofício, o amor pelas águas.
“Se um dia o Capibaribe secar, o Recife morre afogado em lágrimas”, ele gostava de dizer.
Alvinho acabara caindo no rio algumas semanas depois, no mesmo dia em que conhecera Cícero.
*
— Se tu queres aprender a remar, eu te ensino — falou o garoto banguela, observando Alvinho de pé na margem por trás do armazém. Ao lado do pai, este último encarava com receio a correnteza do rio, um remo improvisado debaixo do braço e um bote em miniatura recém-comprado aos pés. O garoto deu risada. — Tá com medo, patrãozinho?
Alvinho fez bico, ultrajado. O outro menino devia ter mais ou menos a mesma idade que ele, franzino, de joelhos ralados e pele marrom-avermelhada, mas parecia mais velho — daquele jeito que pareciam os filhos de marinheiro quando subiam sozinhos nos mastros e nadavam na virada da maré enquanto Alvinho sempre precisava estar acompanhado. Era o tipo de menino que fazia com que se sentisse... bobo.
— Não preciso da ajuda de ninguém, muito menos de ti. — Alvinho empinou o nariz.
— Ora, o que é isso, meu rapaz! — O pai colocou a mão em seu ombro. — Cícero é filho do meu contramestre. Um dia tu vais herdar isso tudo, e vais precisar saber lidar com teus empregados. — Inclinando-se para falar somente ao ouvido do filho, Doutor Alcântara acrescentou: — Os tempos são outros, Alvinho. A era dos senhores de engenho está por um fio. É chegada a hora das empresas, das metrópoles! Vai te fazer bem conviver com os pobres. Anda!
Alvinho não entendeu o que o pai quis dizer, mas notou que o tal menino Cícero tinha ficado acanhado com aquelas palavras, e por isso se sentiu menos bobo. Além disso, o garoto espiava com um olhar tão comprido o bote que seu pai havia mandado fazer para ele... Alvinho deu um sorriso triunfante para o rapazinho magricela.
— Talvez eu te empreste meu barco. Mas só se tu remar bem.
— Só não deixe ele sair do raso, ouviu? — Doutor Alcântara segurou Cícero pelo cangote antes que o garoto pudesse empurrar o bote pela margem, indicando o banco de areia.
— Pode deixar, patrão.
Os dois meninos deslizaram para dentro da pequena embarcação. Acomodados nos banquinhos de madeira, desafiaram as primeiras marolas. Alvinho, sentado tenso feito um coqueiro, espiava a cada dois segundos o cais que se afastava, segurando lá no fundo a vontade de chorar. Cícero, bem mais à vontade, aprumava o barco de um lado e depois do outro, usando as mãos como leme.
— Tu não pode brigar com a corrente desse jeito — Cícero explicou, vendo o filho do patrão tentando remar feito condenado rio acima. — Tu já visse as capivaras atravessando?
— As capivaras? — Alvinho largou o remo para encarar o companheiro de embarcação.
Cícero indicou um rebanho daqueles roedores descansando junto à margem.
— Tu tens que ir cruzando, assim, ó. — O menino gesticulou na diagonal da água. — Tens que deixar o rio ganhar um pouquinho, ou então ele vira nós dois. No mar é diferente. No mar, ele sempre ganha. Uma vez, caí no mar e só não morri porque segurei num peixe-boi.
— É mesmo? — Alvinho ergueu as sobrancelhas. Estava começando a achar aquele menino estranho sem os dentes da frente até que bem interessante. Tentou se virar mais uma vez no banco para ouvir melhor a história, mas então o barco bambeou e ele precisou se segurar nas laterais.
— Apruma, patrãozinho! — Cícero riu, ajudando Alvinho a se acomodar de volta na posição correta. — Não te esquece da primeira regra: não importa o que aconteça, a equipe continua remando junta. Não se pode parar.
E Alvinho não esqueceu.
*
O remo fez de Alvinho e Cícero uma coisa só. Enquanto o primeiro aprendia a dominar o rio e os trejeitos dos marinheiros, o segundo podia ser encontrado perambulando na cozinha dos Alcântara ou esperando na porta do colégio chique onde o filho do patrão estudava. Quando o sol começava a baixar por trás dos montes, eles corriam até o cais, aguardando a chegada dos navios e seus marinheiros, molhando os pés na água salobra da praia que era mistura entre Capibaribe e Oceano Atlântico.
Era o que estavam fazendo naquele dia, agora já com dezesseis anos, sentados em uma das docas como dois frangotes tentando se passar por adultos em meio aos marujos.
— Mas olhem só como fica rosada a cara do fedelho! — riu-se Tomás, um dos negros libertos que trabalhavam no grande navio ancorado atrás deles, apontando para a careta que Alvinho fazia ao engolir a bebida, o rum descendo feito fogo pela garganta.
— Alvinho tem fineza demais pra essa tua cachaça — Cícero fez troça, provocando uma nova leva de risadas nos camaradas ao redor.
— Já disse pra tu me chamar de Álvaro, que tenho bem um palmo a mais que tu — o outro reclamou, fingindo um rosto sério, mas levando a garrafa outra vez à boca para passar nova vergonha. — Mas que diabos... Isso arde feito o inferno!
— É porque nenhum rabo de saia partiu teu coração ainda, menino — comentou outro marinheiro, o de pele marcada pelo sal e cicatriz atravessando o rosto.
— Falando nisso, já conseguisse mandar recado pra senhora tua esposa, Tomás? — Cícero perguntou, as mãos ocupadas treinando um nó novo em um pedaço de corda que os marujos tinham lhe arrumado, as feições descontraídas por causa do rum.
Alvinho sempre invejara a facilidade com que Cícero conversava com aqueles homens de dedos calejados e vestes puídas, como se fazia parte da vida deles depressa, compartilhando algo que Alvinho não sabia. Às vezes, ficava remoendo se era por isso que não falava de Cícero para os amigos do colégio. Se estes também tinham algo de que Cícero não podia saber. Quando pensava muito nesses assuntos, Alvinho sentia um incômodo no peito. Como se ele fosse sempre dois, com duas vidas para levar: parte do tempo na terra, parte no rio.
Mas Alvinho não queria pensar naquilo agora, não com a bebida afogueando seu peito e o sol sumindo no horizonte, pintando de rosa e dourado as margens do rio, as folhas das palmeiras e a face corada dos homens. Não enquanto esticava as pernas, observando os músculos das coxas sob os calções, o novo corpo que brotava dentro dele. Em vez disso, preferiu olhar para a risada de Cícero, enxergando nele também a sombra do homem que um dia seria, o infinito de coisas que ainda desbravariam juntos na juventude eterna.
Com certo custo, pois sua cabeça parecia leve, leve, voltou a fixar sua atenção no relato que Tomás prestava aos amigos. Ao que parecia, as coisas não iam nada bem para a família do marujo.
— Uma seca, uma seca como nada que já se viu — ele dizia, contador de histórias nato, gesticulando para sua pequena audiência. — O povo tá lambendo lama e comendo sal. O dinheiro que mando daqui não dá pra quem chegue. Na carta, Maria fala que tava pensando em sair, em seguir caravana com os outros irmãos pretos que acompanham Antônio Conselheiro. Capaz de já ter ido.
— E tu, vai fazer o quê? — Cícero insistiu, e Alvinho notou com um olhar de esguelha que o amigo parecia mesmo impressionado com a história.
Tomás deu de ombros, virando o rosto para cuspir no rio.
— Só mais uma viagem e vou atrás deles. É terminar de subir esses caixotes, entregar na Bahia e voltar. Já falei com o capitão.
Os outros marinheiros grunhiram em discordância. Um dos homens deu um tapa no ombro de Tomás.
— E tu vai viver de que, abestalhado? Melhor trazer teus bastardinhos pra cá. Bota cada um pra trabalhar em uma coisa, tua esposa costurando, muito melhor.
— Pra isso eu tenho que encontrar eles primeiro — Tomás respondeu baixinho antes de desviar o rosto e ficar em silêncio.
O jeito morto com que o homem encarava o leito do rio, perdido em pensamentos, fez com que Alvinho se sentisse sóbrio de novo. Ele gostaria de ajudar, gostaria de poder fazer alguma coisa. Não era o que seu pai sempre dizia, sobre a honradez de cuidar dos bons amigos?
Alvinho mordeu os lábios, raciocinando, pensando no que Doutor Alcântara faria se estivesse em seu lugar. A ideia brotou mais rápido do que seu cérebro embriagado foi capaz de julgar:
— Tu não pode pedir um empréstimo a meu pai não? Ou pedir ajuda à polícia?
Os marinheiros levaram um segundo para reagir, mas então o silêncio foi substituído por risadas ainda mais altas do que antes, como se Alvinho tivesse realmente contado uma anedota. Ele sentiu as bochechas esquentando. Queria sumir. Como se lhe adivinhasse os pensamentos, Cícero apareceu a seu lado, segurando-o pelo colarinho.
— Tu às vezes é burro, Alvinho — ele disse em seu ouvido antes de pular na água, arrastando o amigo junto.
E Alvinho se deixou levar para longe pela correnteza fria, lavando sua vergonha.
*
Cathy apareceu quando Alvinho estava para completar dezoito anos. Catherine Riley havia nascido em Londres e era filha de banqueiro. Passara a infância na província do Rio de Janeiro, mas, ninguém sabia bem o motivo, viera gastar algumas temporadas com a tia no Recife.
Seu apelido espalhou-se depressa, já que ninguém conseguia pronunciar o nome direito, e Cathy rapidamente tornou-se uma figura conhecida e desejada nos bailes e eventos da sociedade recifense. Fosse pela beleza da mocidade, emoldurada por fios castanhos e tez branca feito leite, ou pela simples atração que uma jovem solteira, inglesa e rica causava nos círculos sociais, Cathy era considerada, sem sombra de dúvidas, um trunfo a ser conquistado.
E assim também pensava Doutor Alcântara.
— Casa-te com ela, Álvaro — aconselhou, minutos antes da festa de aniversário do filho, apertando-o pelo ombro enquanto o rapaz ajustava a lapela. — Se, por cima do nosso patrimônio, tu ainda somar o nome e prestígio dos Riley, então não haverá nobreza maior que os Alcântara!
A festa de Alvinho foi mesmo um espetáculo. O sobrado estava todo iluminado, com música vazando pelas janelas escancaradas, dezenas de convidados presentes. Até o inspetor do Arsenal da Marinha viera prestigiá-lo, presenteando o rapaz com uma bússola decorada em filigranas de ouro.
No salão, enquanto os jovens se ocupavam em flertar sob a supervisão das senhoras, o assunto dos homens girava em torno do assentamento de Canudos. O nome de Antônio Conselheiro se espalhava entre a fumaça dos charutos. Falava-se do exército que marchava, do governo que esperneava e dos sertanejos que viviam à mercê da sorte sem pagar impostos. Mais que tudo, falava-se de dinheiro.
Alvinho escutava aqui e ali, lembrando-se da conversa com Tomás, mas aqueles problemas não duravam muito e nem geravam mais do que marolas em seu espírito adolescente. Quando a orquestra anunciou “Súplica de um Anjo”, o rapaz inundou o peito de coragem e tirou Cathy para dançar.
De perto, a garota era ainda mais formosa.
— Ouvi dizer que gostas de remar — ela disse com seu sotaque de lugar nenhum, puxando conversa por baixo dos cílios compridos e bem curvados.
— E a senhorita gosta? Digo... gosta de assistir? — Alvinho se atrapalhava com as palavras.
A jovem riu.
— É um esporte muito apreciado na Inglaterra. Titia diz que é bom poder trazê-lo ao Recife, pois a cidade é muito propícia para o remo. O senhor sabe, o esporte é um sinal de civilidade entre os homens. — Ela sorriu de lado com malícia, prendendo o olhar ao dele entre um ou dois passos de dança. — Talvez eu pudesse vê-lo competir um dia, Álvaro.
— Infelizmente não faço parte do Club, senhorita.
Ela deu de ombros.
— Talvez não seja assim para sempre.
Mais tarde, após receber inúmeros tapinhas nas costas e dançar mais duas vezes com Cathy, a festa começou a morrer, e Alvinho foi até a cozinha do sobrado a fim de surrupiar uma garrafa de conhaque para tomar escondido com os colegas. Encontrou Cícero.
Ele também estava bonito. Havia penteado o cabelo e lustrado o cinto e os sapatos, e sua camisa branca estava bem passada sob o colete. Cícero não tinha bigode, assim como acontecia com muitos dos indivíduos de sangue indígena nas origens, nem parecia com nenhum dos convidados da festa. Mas Alvinho não pôde deixar de se impressionar, naquele momento, com o porte do amigo. O modo como seus músculos haviam crescido, as costas alargado, as sobrancelhas francas, confiantes. Cícero havia virado homem, e era como se Alvinho só tivesse percebido agora.
— Feliz aniversário, meu caro — disse Cícero, oferecendo-lhe um abraço. Até sua voz era mais firme. Ele cheirava a colônia barata, suor e rio, e Alvinho não sabia muito bem o que dizer.
Mas as cozinheiras estavam ocupadas e trataram de colocar os rapazes para fora. Os dois acabaram numa das alcovas do corredor, de onde podiam ouvir os convidados sem serem vistos.
— Espero que estejas gostando do teu dia — Cícero comentou.
Alvinho relatou para ele os acontecimentos da noite, comentando sobre os brindes, a bússola e as valsas com Cathy, mas, conforme contava, percebia que Cícero ia ficando distante, como se as palavras que ouvia não fossem mais do que espuma do mar em suas preocupações.
— Ei, estás me escutando? — Alvinho chamou, estalando os dedos na frente do rosto do amigo.
— Estou, estou — Cícero riu. — Não é nada. Continue. — Ele esticou o pescoço para espiar o salão de baile. — Essa tua moça é bem bonita. Já a beijaste?
— Não é assim que as coisas funcionam com moças de família — Alvinho retrucou, querendo rir e sentindo o rosto arder ao mesmo tempo. — Não são como as raparigas do cais das quais tu me conta. Se dou um beijo em Cathy, preciso me casar com ela no mês seguinte.
O riso voltou a morrer nos lábios de Cícero, virando apenas um esgar.
— Quando não se tem eira nem beira, Alvinho, um beijo pode ser só um beijo, porque é tudo que se tem pra dar.
Alvinho franziu a testa. De modo geral, Cícero sempre gostava de ouvir suas histórias, maravilhado feito alguém que escuta as aventuras fantásticas de um príncipe encantado. Quando garotos, nunca os incomodou que um deles ficasse sempre na cozinha, esperando. Que tivesse permissão de frequentar o sobrado, mas nunca além do batente que separava moradores e empregados. Agora, parecia haver um abismo entre eles.
— Eu não quis dizer...
— Alvinho, tu constrói um barco comigo? — Cícero interrompeu de repente.
— Um barco? — O outro estranhou.
Os olhos de Cícero brilharam. Ele se desencostou da parede e ficou de frente para Alvinho.
— Igual aqueles que os atletas do Club usam. Cinco bancos. Eu e tu competindo de verdade. Talvez chamar mais alguns homens do armazém e montar uma equipe. Botar esses filhotes de europeu de meia pataca que nunca pisaram em mangue pra suar de verdade. Aceitas?
Era difícil negar qualquer coisa a Cícero, ainda mais quando ele próprio sentia o coração batendo mais forte ante à ideia. Nunca pensara em competir de fato, uma vez que as regatas eram organizadas apenas para a nobreza do Club Pernambucano, mas nada os impediria de desafiá-los para uma disputa amigável nas águas do rio. E agora com Cathy...
Alvinho se imaginou lado a lado com Cícero em um barco comprido e bem polido, pintado de vermelho. Eram homens agora, dois esportistas. Seu bigode brilhava ao sol, farto e enrolado nas pontas. Eles usavam camisas sem manga, listradas em branco e carmim, remando juntos tal qual heróis do Olimpo, fazendo suspirar as mocinhas que assistiam à margem.
A ideia pareceu tentadora demais para ser negada.
— Talvez eu possa falar com meu pai. Talvez ele consiga nos alugar uma vaga no cais e pagar o numerário do barco. Não vou prometer nada, veja bem, mas posso tentar.
*
Na semana em que a Guerra de Canudos teve fim, Alvinho estava na casa de chá no centro da cidade, acompanhando Cathy em uma reunião do que chamavam de “Real Sociedade da Juventude Britânica”, que era o nome inventado para qualquer encontro entre aqueles que, assim como Catherine, tinham algo de britânico na árvore genealógica e faziam questão de celebrá-lo. Se costumava achar os portugueses reinóis cheios de pompa, era apenas porque não convivera com os ingleses ainda, Alvinho pensava, mas guardou a observação para si.
— Dizem que as tropas do general Artur Oscar de Andrade Guimarães já estão retornando. Um grande feito para os pernambucanos ter um conterrâneo à frente da vitória em Canudos, sem dúvidas — um dos rapazes comentou.
— É verdade que os soldados trarão também a cabeça de Antônio Conselheiro? — uma das amigas de Cathy perguntou, uma mocinha franzina de sobrancelhas tão loiras que ficavam quase invisíveis no rosto assustado. Enojada, ela levou a mão à boca.
— Sim, é verdade. Ouvi dizer que não sobrou quase ninguém no assentamento.
Alvinho arregalou os olhos por um instante, mas disfarçou tomando um gole daquele seu chá esquisito com leite e açúcar. Pensava em Tomás. Imaginou se a família do homem estaria entre os mortos.
Outro dos rapazes à mesa deu um risinho.
— Bem, é o que acontece quando pessoas tentam se colocar acima dos interesses da República.
— Pois tenho curiosidade de conhecer o sertão — falou Cathy. — Ver com meus próprios olhos isso de que tanto falam. Titia está no aguardo dos escritos do jornalista Euclides da Cunha. Dizem que ele está fazendo um interessantíssimo estudo sociológico sobre os povos interioranos. São muito diferentes de nós.
Alvinho sentiu-se desconfortável com os rumos da conversa, pensando que deveria dizer alguma coisa. Mas, antes que qualquer pensamento pudesse se transformar em palavra, um outro integrante do grupo, calado até então, resolveu se pronunciar. Chamava-se João Victor Alfarra e era alto e forte, com um rubor saudável nas bochechas que sugeria uma vida ativa.
— Em vez de nos debruçar sobre tais assuntos mórbidos, foquemos na diversão! Saibam que o Club resolveu organizar uma regata em comemoração à chegada das tropas, a maior que esta cidade já viu. Equipes de cinco, com direito a um belo prêmio.
Mesmo com o incômodo ainda na base do estômago, Alvinho estaria mentindo se dissesse que não ficou interessado. Cathy o cutucou por baixo da mesa ao mesmo tempo em que abria um sorriso para o outro rapaz.
— Ora, isso é maravilhoso — ela disse. — Sabias que Álvaro também rema?
— É mesmo? — João Victor avançou o corpo sobre a toalha de linho a fim de inspecionar a constituição física do outro rapaz.
Alvinho deu de ombros, encabulado.
— Só por diversão, nada mais. Às vezes apostamos corrida com os marinheiros do porto. Minha família não faz parte do Club.
— Mas por certo não te importarias se eu fosse assistir a um de teus treinos?
Alvinho sorriu, um orgulho besta brotando no peito sem ser convidado.
— Ora, fique à vontade, mas já aviso que remo bem.
Mais tarde, acompanhando Cathy para casa e deixando-a no portão da residência de sua família, Alvinho só tinha olhos e ouvidos para a regata. Mas ficou ainda pior quando a moça se inclinou perto dele, sussurrando em um tom que sugeria ser ao mesmo tempo anjo e demônio:
— Vence a regata que te dou um beijo.
*
No barracão do armazém, já muito depois do anoitecer, Alvinho e Cícero trabalhavam no barco, passando a última demão de tinta vermelha no casco. Haviam decidido batizar a embarcação de “Capivarais”, uma piada ante os nomes pomposos que costumavam competir nas regatas, mas Alvinho não estava conseguindo arrancar muitos sorrisos de Cícero naquele dia. Ou nos últimos dias, para ser sincero — era como se o amigo andasse sempre incomodado, sempre perdido em pensamentos.
— Devíamos montar uma equipe e competir na regata — Cícero insistia, pela décima vez naquela noite, os braços cobertos de manchas de tinta.
Alvinho balançou a cabeça.
— Já te disse, só quem é do Club pode participar.
— Até onde sei, o rio continua público. Está bem, não poderíamos ganhar o prêmio, mas dane-se o prêmio! Poderíamos muito bem aparecer no dia da regata e colocar os outros barcos à bancarrota.
Alvinho deixou a lata de tinta que segurava pender ao lado do corpo, contemplando o amigo com um olhar piedoso.
— Teu problema, Cícero, é que sonhas demais.
O filho de operário estava para responder quando um vulto se anunciou na porta do barracão. Era João Victor, ainda em seus trajes de remador.
— Boa noite, senhores. Um belo barco este que estão pintando. — Ele pigarreou mais uma vez. — Terias um minuto para conversar em particular, Álvaro?
Os dois amigos trocaram olhares. Cícero cumprimentou João Victor de cabeça baixa, ao modo como fazem os marinheiros diante de seus patrões, antes de sair para dar privacidade ao recém-chegado. Por trás das costas de João Victor, porém, Cícero arregalou os olhos e fez um gesto de desdém para Alvinho, que precisou se segurar para não sorrir.
— Estou a montar uma equipe forte, Álvaro — começou João assim que ficaram sozinhos. — Quero mesmo vencer essa regata. Preciso de ti.
Então o remador estava ali para oferecer seus sonhos em uma bandeja de prata. Alvinho, óbvio, aceitou de imediato o convite. Os novos colegas de equipe apertaram-se as mãos. Antes de se despedir, porém, João Victor coçou os bigodes, pensou mais um pouco e perguntou:
— Escute, estou ainda com uma vaga na equipe, na posição do sota voga. Terias alguém para indicar?
Cícero. Seria a escolha óbvia. Alvinho sabia que Cícero era o melhor remador que já conhecera. Talvez pudesse ser ainda melhor que Alvinho, não fosse sua disposição tão inabalável para auxiliar e cuidar do filho de Doutor Alcântara sempre que entravam na água.
Mas então Alvinho lembrou-se da conversa na casa de chá. Das festas e do colégio. Levar Cícero consigo seria unir aquelas duas partes tão dissonantes de sua vida, assumir diante de todos que não era uma coisa nem outra. Seus amigos enxergariam sua vida no cais, tão mais próxima do povo que da nobreza. E Cícero... Cícero veria o que ele era. O que Cathy era. Todos os luxos de Alvinho seriam expostos um a um em carne viva, até que tudo tivesse gosto de cinzas. Não... Alvinho não desejava lidar com aquilo. Ele podia mentir. Seria melhor para todo mundo.
— Infelizmente, não tenho a quem indicar — respondeu, os lábios tremendo de leve. — Mas tenho certeza de que vais encontrar alguém depressa.
O outro assentiu, pensativo, e um instante nervoso se passou entre os dois.
— Certo — João Victor finalmente quebrou o silêncio, alisando o tecido do uniforme para ir embora. — Apareça no Club para treinar na semana que vem. Temos pouco tempo.
Não demorou nem meio minuto após a saída de João Victor para que o soco acertasse o rosto de Alvinho. Com a bochecha pulsando e gosto de sangue na boca, o rapaz cambaleou de lado, confuso. Quando entendeu o que acontecia, fez jus ao próprio nome: ficou branco feito papel. Era Cícero, com o rosto afogueado e os olhos úmidos. Não fora embora. Devia ter se esgueirado pela parte de trás do barracão, esperado por baixo dos apoios de madeira que suspendiam as docas ou se enfiado atrás de algum caixote para ouvir a conversa. E ele ouvira. Cícero sabia.
— Eu... Deixe-me explicar, Cícero...
— Nunca pensei que tu faria uma coisa dessa. Tu é igual a eles, Álvaro.
O segundo golpe veio, e dessa vez Alvinho precisou apará-lo com o braço e desviar o corpo. Os dois rolaram de lado pelo chão de tábuas e serragem. Lutaram por certo tempo, como se ainda fossem meninos, como se ainda estivessem se conhecendo naquele barquinho improvisado, tantos anos atrás. Entre socos e pernadas, Alvinho sentia que um mundo de dores não ditas se derramava sobre eles. Estavam se machucando por coisas que ainda não tinham nome.
Por fim, Cícero conseguiu imobilizá-lo sob si. Alvinho engoliu em seco, preparando-se para ser esmurrado sem defesa, sentindo o suor de Cícero pingando em seu rosto, o amigo lindo, tão lindo com a luz da lua emoldurando-o contra a penumbra do barracão.
Em vez disso, Cícero abaixou o rosto. Suas respirações se misturaram de repente. As lágrimas do amigo desceram pelas bochechas de Alvinho, fundindo-se a seu próprio sal.
Cícero roçou o nariz pelo pescoço do outro, devagar, com raiva e com carinho ao mesmo tempo. Alvinho mal conseguia respirar, temendo morrer afogado por um peso que não entendia.
— Talvez tu estejas certo e eu sonhe demais — Cícero murmurou baixo em seu ouvido. — Mas o teu problema, Álvaro, é que tu às vezes é burro. Até nunca mais, patrãozinho.
Com um safanão, Cícero se ergueu e saiu correndo, deixando Alvinho estatelado no chão, incapaz de reagir.
*
21 de novembro de 1897. O dia bonito de céu limpo prometia diversão. Antes da corrida, a fina flor da sociedade se reunira nas arquibancadas em suas melhores roupas, e a música e as risadas transbordavam da margem do rio, podendo ambas ser ouvidas a muitos metros de distância. Os soldados de alta patente, recém-chegados de Canudos, contavam suas histórias e degustavam os brindes erguidos em homenagem a seus feitos. Aquele seria um dia memorável para toda a cidade. Nas docas, competidores alongavam os músculos e verificavam seus barcos, e dizem que João Victor Alfarra estava nervoso, ainda que confiante na vitória, pois precisara substituir um membro de sua equipe às pressas.
Alvinho nunca aparecera para treinar e nem estava presente na festa. Nenhum dos amigos o tinha visto, nem mesmo Cathy, ainda que Doutor Alcântara garantisse que o filho saíra de casa no horário habitual. Não sabiam eles que o destino de Alvinho era o cais do Porto do Recife. Procurando pelo melhor amigo, buscando informações entre os marinheiros, ele encontrou o pai de Cícero despachando uma última remessa de carga.
— Meu filho? Meu filho partiu, patrãozinho, pegou um navio e só volta quando Deus achar que é hora.
— Mas partiu? Partiu por quê?
— Disse que não ia ficar aqui pra ver toda essa gente comemorar matança de pobre. Tomás morreu, patrão Álvaro, furaram o homem de bala como se fosse uma peneira!
Horas depois, quando soou o estampido dando início à regata, um último barco apareceu remando lá atrás, bem na rabeira da competição. Um barco vermelho, novinho, tripulado por um atleta só.
Alvinho não tinha chance alguma contra as equipes, mas remou o Capivarais mesmo assim, concentrado somente na força da água, sua cabeça um turbilhão. Nunca fora bom em dizer o que sentia, só ficava com a mente em ordem ali dentro do barco, no movimento ritmado de braços e pernas, no barulho das marolas. Não importa o que aconteça, a equipe continua remando junta. Mas agora havia uma ausência atrás dele. Havia falhado com Cícero, e nunca mais o veria. Havia falhado com Cathy. Nunca seria nenhum dos dois, e Deus jamais haveria de perdoá-lo por isso. Ficava pensando, entre uma remada e outra, ouvindo o barulho das pessoas nas arquibancadas ao longe, se seria para sempre como aquele rio, correndo e derramando lágrimas em busca do oceano. Se procuraria por Cícero em cada rosto, em cada cais no qual pisasse.
O barco vermelho chegou por último. Quando Alvinho pisou em terra, apenas Cathy veio recebê-lo na linha de chegada, pois todos os outros estavam ocupados demais com o festejo dos campeões.
— Sei reconhecer um coração partido quando vejo um — ela disse, estendendo um lenço bordado para secar o rosto do rapaz, encolhido de dor e vergonha. — Sei mais do que gostaria. Mas, se puderes ser um amigo e companheiro para mim, posso ser tua amiga também, Álvaro.
Eles se casaram alguns meses depois. Dizem que foram felizes, ainda que Doutor Álvaro Alcântara fosse conhecido como um homem de poucos sorrisos e muito trabalho. Mudou-se para o Rio de Janeiro com a esposa assim que se formou advogado — disse não sentir mais nenhum encanto pelo Recife. Antes de ir, porém, doou o dote da esposa e o barco que construíra com Cícero para os operários do armazém. Soube mais tarde que o Capivarais fora rebatizado, e que os homens das docas haviam criado sua própria agremiação para competir contra os ingleses, o Clube dos Pimpões. As regatas ficaram cada vez mais populares e acirradas na Veneza brasileira.
Cícero ele até hoje nunca encontrou. Foi engolido pelas ondas. No mar é diferente. No mar, ele sempre ganha.
e as vezes eu leio... sobre o rio, o meu, o mar. bonito texto, da regata aos vinténs
Conhecendo um pouquinho da sua obra, o trecho "sussurrando em um tom que sugeria ser ao mesmo tempo anjo e demônio" me fez na hora lembrar do Tolú hahaha.
Ótimo texto, Fernanda. A parte que mais me pegou foi o contexto histórico, o pano de fundo da Guerra de Canudos. Me fez pensar que tem gente comemorando morte de pobre até hoje e que essa herança colonial que você aborda ainda está aqui, no Brasil de 2024.
Gostei muito dos diálogos e da sua exposição de mundo, levando a gente pro século XIX sem querer dar uma aula de história pra gente.
Em geral eu prefiro contos com finais mais abertos, mas acho que sua conclusão também nos permitiu sentir a permanência da dor de Alvinho e provavelmente do Cícero. E achei a Cathy uma personagem com muita personalidade e bom coração.
Parabéns pelo texto e pelo seu aniversário!